quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Capítulo 56 - Depois Da Partida

Depois da partida de Peter, os dois passaram a conversar diariamente pelo computador, estreitando aquele laço amoroso. Ao mesmo tempo em que fortalecia o relacionamento com ele, Isabela desenvolvia-se interiormente mediante o estudo da Doutrina Espírita. Amparada por Thomas, sentia despertar seu potencial mediúnico. Queria trabalhar para auxiliar seus irmãos, mas ainda não compreendia exatamente como poderia fazer isso.

Em uma noite, encerradas as atividades de estudo do Evangelho, Eliana aproximou-se dela:


- Isabela, nossos orientadores espirituais pediram para convidá-la a fazer parte de uma tarefa de especial relevância dentro da casa espírita: o trabalho de doutrinação. Disseram-me que você está pronta para iniciar. Gostaria que viesse na próxima terça-feira conhecer de perto a natureza dessa atividade.


A jovem aceitou prontamente.


- Eu virei, é claro. Estou consciente de que tenho deveres a cumprir e me sinto apta. Além do mais, tenho visto com freqüência o padre franciscano - seu nome é Thomas - e ele me disse que devo começar a utilizar minhas aptidões mediúnicas em benefício das pessoas.


- Ótimo, então espero você na próxima terça-feira.
Isabela compareceu no dia combinado e iniciou sua contribuição através da mediunidade de psicofonia, dando oportunidade a espíritos fora do corpo físico de se expressarem.


Quando a tarefa terminou, Helena estava curiosa e perguntou:


- E então, como foi a experiência?


- Fiquei um pouco assustada no começo; então vi Thomas e fiquei mais confiante. Aos poucos entreguei-me, e estou muito feliz. Sinto tanta paz como nunca havia experimentado...


- É porque está no caminho que traçou para sua própria vida. Fico muito contente por você.
Com os olhos rasos de lágrimas, Isabela confidenciou:


- Helena, você tem sido mais do que amiga... E minha orientadora, a pessoa para quem corro sempre que tenho dúvidas ou que as dificuldades ficam maiores... Sua amizade fortalece meu coração. Você é muito mais do que uma amiga... 


Minha ligação com você é mais forte do que a que tenho com minha mãe... Não é estranho? Acha que estou com algum problema?

- Não, Isabela, essa afinidade que nos une é real e também a sinto. Você sabe que tenho três filhos, todos homens, e para mim você é a filha que não tive... Esse sentimento que você percebe é recíproco.


- No entanto, às vezes é um pouco estranho... Não consigo entender bem minhas emoções e sensações...


- Nessas horas, devemos usar os conhecimentos que já possuímos. A Doutrina Espírita nos esclarece quanto a tais simpatias espontâneas, e também so-bre as antipatias. Nosso passado está conosco, dentro de nós, a todo instante. Apesar do abençoado esquecimento das experiências pregressas, que nos permite reconstruir a vida através das novas oportunidades do presente, aquilo que fomos ainda permanece em nosso inconsciente, e não raro determina as escolhas que fazemos, as decisões que tomamos e o destino que construímos.


Por isso é tão essencial o despertar da consciência. 

Temos de caminhar despertos, percebendo-nos e percebendo o que se passa ao nosso redor. Isabela sorriu e abraçou a amiga.

- Ficaria aqui a noite toda ouvindo você...


- Eu também, mas preciso ir. Meu filho está lá fora à minha espera.


Depois de alguns meses participando daquela tarefa, Isabela começou a receber mensagens de diversos espíritos endereçadas a familiares. 


Assumia, assim, a tarefa árdua de levar consolo e esperança aos corações desalentados. Logo estaria terminando o período de residência e poderia integrar-se a outras frentes de trabalho na saúde, junto das crianças.

Outros tantos meses se passaram e a creche estava prestes a ser inaugurada. A alegria e a expectativa tomava conta dos trabalhadores empenhados em co-locar aquela bela tarefa em pleno funcionamento. 


Eliana tinha muitos planos para as crianças que ali seriam acolhidas. A instituição e a creche se localizavam na periferia de São Paulo, em região muito carente de recursos. Na maioria as crianças ficavam pelas ruas ou trancadas em casa, enquanto os pais buscavam o sustento em condições igualmente precárias. A creche era aguardada com ansiedade pela comunidade do bairro.

Naquela tarde de sábado, os dirigentes da instituição realizavam importante reunião com o objetivo de definir os últimos detalhes para a abertura da creche. Em contraste com o entusiasmo geral, Mateus como sempre acontecia, opunha-se veladamente aos propósitos enobrecedores da instituição. Helena captou a contrariedade e até certa animosidade do companheiro de tarefas; fitou Eliana e, notando que a dirigente também percebera a situação e se calara, adotou idêntica conduta. Ao final da reunião, quando todos já haviam saído, interpelou-a:


- Você notou a contrariedade gratuita em Mateus?


- Sim, Helena, mas devemos ter paciência com ele. 


Mateus necessita muito do trabalho e das possibilidades que tem aqui conosco.

- Alguma razão específica?


- Tenho conversado constantemente com meu orientador espiritual a respeito dele. Sempre traz problemas e insinuações descabidas são jogadas com sutileza durante nossas reuniões e, no mais das vezes, depois delas. Ainda assim, a recomendação é para que eu seja paciente e firme com ele. 


Por isso, não dou grandes oportunidades para que expanda sua atuação na casa. Por outro lado, é minha obrigação mantê-lo conosco. Ele precisa da luz que o conhecimento espírita pode proporcionar-lhe.

Diante do sorriso de Helena, ela indagou:


- O que foi?


- Você sempre fala dele com carinho, como se fosse um filho... É interessante.


- Dá para notar?


- Sim, sempre.


- De fato, sinto por ele um carinho maternal, que não sei de onde provém.


- Provavelmente do nosso passado...


Houve entre elas longo silêncio, até que Eliana disse, séria: - Nosso tempo está acabando, Helena.


As oportunidades de renascer na Terra estão findando para os que não se deixarem envolver pela luz divina. Sinto grande preocupação da espiritualidade que nos ampara com aqueles que aqui estão, quem sabe, em sua última reencarnação no planeta. Temos de nos unir cada vez mais e nos fortalecer mutuamente, caminhando no bem, sempre e a todo o custo.

As duas amigas conversaram mais um pouco e depois se despediram. Enquanto isso, Mateus, que levava para casa outros dois membros da instituição, comentava malicioso:


- Eu acho que estamos tomando rumo equivocado. Interpretando a mudez dos companheiros como autorização para continuar, aumentou a dose de veneno:


- Aliás, nossa instituição está mesmo muito ultrapassada, precisando de renovação! Afinal, tudo se modifica, evolui, não é mesmo?


É um princípio básico da nossa doutrina. Tudo está em constante transformação.


Após premeditada pausa, prosseguiu, em tom mais baixo:


- Estou muito preocupado com nossa casa e com a Eliana. Vejo-a muito cansada, estressada com tantas atividades. Não sei, não, mas me parece que está sob influência espiritual negativa... Acho que ela deveria ser encaminhada com urgência para um tratamento espiritual, pois sinto que não anda bem...


Vocês não vêem como está exausta?

- É, tenho percebido que ela não está muito bem... - concordou um deles.


- Pois é... É natural, não? Com tanto trabalho... Acho que ela precisa descansar, tirar umas férias e se refazer. Além do mais, tenho lido muito sobre as mudanças feitas nos centros espíritas por todo o país. Deveríamos adotar essas alterações em nossas tarefas, para adequá-las aos tempos modernos... 


Torná-las mais atraentes, para que mais pessoas venham e permaneçam conosco. Sonho ver nossa casa com o dobro, o triplo de pessoas que a freqüentam atualmente; imaginem todas essas pessoas contribuindo com a creche e as outras atividades... Ouçam o que estou dizendo: 
precisamos de renovação, de mudanças, de atualização. E, infelizmente, acho que a Eliana não está conseguindo compreender o que acontece...

O acompanhante que já falara mantinha a concordância com Mateus, enquanto a outra se limitava a escutar.


Eliana administrava com tolerância as constantes investidas desequilibradas de Mateus, que nascera em um lar católico e, ao atingir a idade adulta, começara a freqüentar casas espíritas, onde invariavelmente criava confusões e dificuldades para os dirigentes e trabalhadores sinceros. Na verdade, ele sempre se voltava contra os dirigentes das instituições pelas quais passara, acusando-os de autoritários e retrógrados, porque suas idéias que não eram acatadas. Passou, então, a fomentar tais idéias em surdina, ao invés de apresentá-las nas reuniões destinadas a essa finalidade.


Ele deixou os dois companheiros em uma estação do metrô e foi para casa. Entrou no apartamento onde morava sozinho e preparou um prato de comida. Depois sentou-se diante da televisão, percorreu vários canais e, por fim, desligou o aparelho e foi para a cama. Tão logo adormeceu, desligou-se do corpo físico e foi recebido por dois espíritos que usavam pesado capuz negro. Um deles falou:


- Seu trabalho precisa ser concluído. Tem de impedir que abram a creche. Faça o que for necessário, mas impeça a mulher de abrir a creche e aproveite para destruir aquela instituição, cujas atividades têm muitos beneficiários. Nossos maiores não estão nada satisfeitos; querem que você destrua a instituição, e depressa. Ela tem atrapalhado muitos da nossa equipe e retardando nossos planos.


Você está lá para destruí-la. Faça isso.

- Estou fazendo a minha parte, são vocês que não cuidam da sua! Tudo o que tento dá errado! Onde estão que não me ajudam? Não conseguirei sozi-nho...


- Cale a boca! Nós estamos fazendo tudo o que podemos!


- E eu também!


- Pensa que não percebemos que você se enfraquece na presença da Eliana?


- E claro que não!


- É claro que sim! Parece um tonto perto dela... Ela domina você, idiota!


Agarrando-o com violência, Mateus o atirou no chão. Nesse instante o outro espírito o segurou:


- Parem os dois com isso! Temos de planejar melhor o que faremos...


O primeiro se levantou e, ajeitando a pesada túnica, disse:


- Se o nosso general aqui não se compenetrar do que deve fazer e passar para a próxima instituição a ser destruída, não caminharemos... É essa Eliana que nos atrapalha... Você deve atentar é contra a vida dela... Acabe com essa mulher de uma vez! O que o impede?


- Ora, não banque você o idiota! Ela não está sozinha! Está sempre protegida.


- Deve ter algum ponto vulnerável que não estamos vendo... Sentando-se na cama ao lado de seu próprio corpo físico adormecido Mateus declarou:


- Eu não encontro... Ela é uma mulher de caráter impecável! Totalmente dedicada a... Vocês sabem...


Os três se calaram, sentindo nítida alteração na energia do ambiente. Um deles disse:

- E melhor sairmos daqui... Parece que há luz se aproximando... E você, Mateus, é bom acordar para não ser pego por eles...


Saíram, e quando Mateus deitou-se sobre seu corpo físico, no intuito de despertar, foi impedido por intensa luminosidade que envolveu o ambiente. Do interior da luz surgiu a imagem de uma bela mulher que ele reconheceu, sem, no entanto, saber quem era.


- Licínio, sei o que está tentando fazer - ela falou. - Apesar de suas intenções, o divino senhor Jesus o ama. Ele quer o seu bem e permitiu que você viesse para o centro do Evangelho redivivo, na esperança de que a luz da Doutrina Espírita pudesse despertar seu coração endurecido por milênios de escolhas desastrosas.


Mateus, que fora Licínio, tremia sem resposta. A presença amorosa de Constância - que presentemente, também encarnada, ocupava a presidência da instituição espírita que ele freqüentava -manifestava-se adotando a forma espi-ritual que tivera como Deborah, pois sabia que assim despertava nele sentimentos de remorso e dúvida. Ela prosseguiu:


- Volte-se para Jesus. Não deixe escapar esta oportunidade. Jesus conhece seu coração, sabe de seus propósitos destrutivos, mas o ama incondicionalmente, tal como eu. Embora você não o recorde agora, nós dois viemos do sistema de Capela, onde nossa ligação afetiva era muito grande. Viemos para a Terra a fim de aprender a amar e aceitar nossa gloriosa destinação. E você, meu querido, ainda se nega a deixar os erros do passado, a mudar seu coração, a admitir que os ensinos de Jesus sejam o centro de sua vida... Onde quer parar? Em outro planeta primitivo? Sabe que a operação de exílio da Terra já começou, já falamos no assunto algumas vezes. Além do mais, tem escutado isso reiteradamente na casa espírita. Não está cansado dessa caminhada sem sentido que empreende? Escolha Jesus, escolha o bem, a paz, o amor. Escolha o caminho da regeneração! Licínio, para você, como para milhões de irmãos nossos, esta é a última chance de reencarnar no planeta.


Legiões de almas estão sendo transferidas do orbe da Terra para expiar seus débitos e aprender a viver pelo amor. Não desperdice esta sagrada oportunidade. O momento é por demais importante. 

Vamos fazer nosso trabalho de regeneração, e não tardará nosso regresso a Capela...

Num esforço enorme, Mateus gritou:


- Vá embora! Afaste-se de mim!


Despertou, então, com seu próprio grito e sentou-se na cama, trêmulo. Le-vantou-se e foi até a cozinha tomar um copo de água. Abriu a janela da sala, observando o tráfego incessante dos carros madrugada adentro. Acendeu um cigarro, depois outro e mais outro. Com o coração descompassado e interior-mente abalado, decidiu tomar um copo de uísque. Tomou vários e, exausto, voltou para a cama; nem com isso conseguir dormir. Constância, que se man-tivera ao lado dele, orava com fervor e devoção por aquela criatura amada.


Finalmente, quando o dia amanheceu, Eliana acordou conservando vivas na memória as imagens de Mateus. Sabia que estivera em sua companhia durante a noite e lamentou a dureza do coração daquele irmão tão querido.

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