domingo, 17 de setembro de 2017

Capítulo 24 - O Dia Amanhecera

O dia amanhecera radiante, cheio de energia; uma vibração suave e ao mesmo tempo intensa podia ser captada pelas almas mais sensíveis. As ruas da cidade estavam repletas de flores, cujo perfume se espalhava pelo ar em todas as direções. Era primavera em Praga e naquela manhã especial as pessoas não cessavam de chegar para a missa inaugural de Jan Huss à frente da Capela de Belém. Quando, enfim, ele se dirigiu ao púlpito, o recinto estava lotado. Muitos fiéis acorriam para vê-lo e ouvi-lo, dentre eles padre Thomas.

Grande número de espíritos a serviço de Jesus também se fazia presente, envolvendo o ambiente em luz fulgurante e lhe conferindo igualmente forte proteção, de maneira a impedir que entidades das trevas ali penetrassem.


Antes de sair de sua sala, Jan observou o salão lotado. Sentindo o coração envolvido pelas suaves luzes que enchiam a atmosfera, respirou fundo, como a sorver aquelas vibrações e, com os olhos rasos de lágrimas, orou:


- Jesus, meu Mestre, graças te dou pela oportunidade de falar em teu nome, pela possibilidade de te servir por meio das palavras. 


Sinto em meus ombros o peso da responsabilidade por aquilo que proferirei a todas essas pessoas, que aqui procuram o alimento para suas almas. Ajuda-me, senhor, a falar o que é de tua vontade. Não me permite colocar os olhos em mim mesmo; impede-me de dizer uma só palavra que esteja em desacordo com a tua vontade e os teus desejos. 

Ampara-me a boca e os lábios, para que sejam instrumentos de tuas misericordiosas palavras. 

Amém.

Em seguida, resoluto, adentrou o salão e ocupou seu lugar ao lado do rei. Venceslau outorgou-lhe oficialmente, diante de todo o povo, a condução da capela e o seu púlpito, e depois se sentou. A rainha Sofia presenciava, satisfeita, a solenidade. O arcebispo também acompanhava os mínimos movimentos do clero, da nobreza, e especialmente de Jan Huss. Ele, então, tomou o púlpito e pela primeira vez celebrou toda a missa na língua tcheca, e não em latim, como era o usual em todas as igrejas católicas, de sorte que todos o podiam compreender. Falou sobre a força da fé em Deus e a necessidade do homem de nele depositar total confiança. Depois levou o povo a meditar sobre a urgência das reformas que a Igreja precisava se comprometer a realizar, se quisesse servir a Deus, auxiliando o povo a fortalecer sua fé.


Eloqüentes e persuasivas, suas palavras foram recebidas com extrema simpatia pela quase totalidade dos presentes. Não obstante guardasse reservas frente à empolgada preleção de Huss a respeito dos abusos da Igreja, o clero o apoiava, na maioria, crendo que suas pregações fortaleceriam a Igreja tcheca.


Vesceslau e especialmente Sofia estavam radiantes ao deixar a capela. Sentiam, confiantes, como se nova etapa se iniciasse. De fato, aquele momento marcaria a oposição declarada de Praga aos abusos eclesiásticos.


A alguns quilômetros dali, em uma clareira, quatro entidades espirituais assistiam a distância a movimentação na capela. Uma delas comentou, visivelmente contrariada:


- Não estou gostando nada do que vejo.


- E... Também não me agrada o rumo que as coisas estão tomando - respondeu outra. 


- Com esse andar a situação poderá complicar-se para nós.

A terceira comentou:


- Não pudemos nos aproximar... Isso não é bom...


E a que se mantivera calada ergueu a voz para ordenar:


- Calem-se. Não estão vendo que necessitamos de concentração? Precisamos de Núbio aqui.


- Por quê? Ele é capaz de nos trucidar por não termos sequer nos aproximado...


- Fique quieto, se não tem nada inteligente a dizer...


A grotesca figura ia se defender, quando chegou uma entidade espiritual envolta em pesado e negro manto. Os quatro se colocaram em posição de reve-rência e cumprimentaram Núbio, que os fitou e indagou:


- O que se passa? Por que me chamaram?


- Não pudemos alcançar a capela e não conseguimos saber detalhes do que está acontecendo...


Ele olhou atentamente para o local e depois comentou:


- Ora, não é preciso esforço algum para saber o que se passa.


E tomando com violência o rosto de um deles, mostrou a movimentação:


- Estúpida criatura, o que está vendo?


- Não sei...


- Olhe bem, preste atenção...


- Estão conversando, sorrindo... Parecem felizes...


- Exatamente! Exultantes, para ser exato.


- Por que não pudemos ir até lá?


- Vocês são patéticos... O que acham? Os espíritos de luz nos impuseram barreira vibratória.


- Mas você não poderia tê-los impedido?


- E claro que poderia, se estivesse aqui, não é mesmo? Esse era o trabalho de vocês... Em busca de defesa, uma das entidades objetou:


- Nós tentamos... E foi por isso que o chamamos... 


Bufando impaciente, Núbio ficou longo tempo a observar e viu quando Jan Huss saiu da capela em alegre conversação, junto ao arcebispo de Praga. 

Depois verificou que diversos padres e bispos o cumprimentaram com sincera simpatia e, virando-se para os companheiros, declarou:

- Temos muito a fazer aqui. Esse Jan Huss parece que nos dará trabalho. Conquistou a simpatia do clero. Continua lendo aquele professor inglês?


- Tenho acompanhado seus estudos e escritos e sei não só o lê com freqüência, como parece inspirar-se nele para escrever os próprios textos. E evidente que o adotou por mentor.


- Como eu imaginava. Estamos diante de uma criatura que certamente nos criará problemas.


Calou-se por instantes, pensativo, e concluiu:


- Mas nada que não possamos controlar e vencer. 


Vamos, temos muito trabalho a fazer. Esse Jan Huss precisa ser destruído.

As quatro entidades, lideradas por Núbio, logo desapareceram, enquanto comentavam:


- Como faremos?


- Não se preocupem. Nossa falange é grande e temos auxiliares espalhados em todos os cantos. 


Não será difícil manipular os homens de acordo com nossos interesses.

Na porta da capela, padre Thomas cumprimentou Huss, parabenizando-o pela importante conquista. 


Assim que saiu, retornou para o mosteiro e foi dire-to procurar a filha. Batendo na porta do quarto, chamou:

- Verônica, você está aí?


Abrindo pequena fresta, ela respondeu baixinho:
- Sim, estou aqui.


Thomas percebeu que a jovem escondia o rosto e estranhou:


- O que está havendo, filha? Abra a porta.


Hesitante, a jovem acabou por abrir, e o pai entrou. Ao ver seu rosto machucado e suas mãos em carne viva, assustou-se:


- O que aconteceu com você?


Ela baixou os olhos e, esforçando-se para conter a tristeza, balbuciou:


- Eu caí...


Ele examinou o ferimento perto dos olhos e o das mãos, e insistiu:
- Vamos, conte-me. O que está havendo? O que aconteceu? Não suportando mais, ela explodiu em lágrimas: 


- Eu estava limpando a escadaria principal do mosteiro. Boris me obrigou a limpá-la quinze vezes. Cada vez que aparecia, dizia que o serviço estava mal feito, que eu precisava fazer tudo outra vez. E de novo e de novo me obrigou a limpar. 

Da última vez, eu já não conseguia pegar o pano, mas ele insistiu que eu deveria repetir a limpeza. 

Ergui-me e mostrei-lhe o estado de minhas mãos, mas ele retrucou que aquilo não era nada, que muitas penitências a que ele próprio se obrigara já o haviam ferido muito mais. Eu não suportei: 

avancei contra ele, que me empurrou. Caí e ele me empurrou novamente; desequilibrei-me e rolei da escada... Foi assim que feri os olhos.

- E ele, o que fez?


Cheia de ódio, Verônica respondeu:


- Saiu dizendo que pediria a alguém para me ajudar.
- Não a acudiu?


- Nem tomou conhecimento. Fiquei caída, gemendo, até que a irmã Adriana veio me ajudar, garantindo que a culpa fora minha por tentar agredir o padre Boris. Deu-me o recado de que deveria terminar o trabalho e depois ir para a capela do mosteiro, rezar durante o resto da noite para ser perdoada por tê-lo agredido...


A jovem não conseguiu dizer mais nada. Thomas abraçou-a com profundo carinho e ela chorou convulsivamente em seu ombro. Quando conseguiu se acalmar, indagou entre suspiros e soluços:


- Por que isso tem de acontecer? O que fiz ao meu primo para que ele me odeie? O que fiz, pai?


-Não sei, filha. Às vezes parece-nos que a vida é injusta, mas sei que não é.


- Claro que é, pai! Esse Deus a quem vocês tanto dizem obedecer é um ser que não nos ama. Do contrário, por que nos faria sofrer tanto? Não consigo aceitar...


Fitando-a longamente, Thomas custou a falar. 


Enfim, inspirado por Angélica, entidade espiritual que o acompanhava, indagou:

- O que sua mãe costumava dizer sobre questões dessa natureza?


Verônica limpou os olhos e fitou o pai em silêncio. Depois, baixou a cabeça e respondeu:


- Dizia-me que Deus sabe todas as coisas, que é bom e amoroso, mas que a Igreja tomou o seu lugar na Terra e está abusando demais do poder que o Todo Poderoso lhe concede.


- Geórgia era uma mulher singular. Tinha uma compreensão tão clara das coisas que chegava a me assustar. Ela estava certa, filha. Entendia as verdades espirituais melhor do que a maioria dos padres. Não podemos atribuir a Deus uma culpa que é nossa. - Nossa culpa?


- Dos homens em geral.


- Não posso concordar. Então, por que ele permite que coisas como essas aconteçam? Por que permite que homens inescrupulosos abusem do poder, destruindo vidas, como faz a Inquisição?


- E quem diz que permite? Quem diz que o Pai não está agindo para mudar as coisas?


- Não... Não posso aceitar esse Deus. Há muita injustiça na Terra. Veja o meu caso: o que fiz para ter de sofrer desta forma?


Sem saber o que responder, Thomas voltou a abraçar a filha e pediu:


- Tenha calma, por favor. Ainda que não possamos compreender de imediato, deve haver uma razão; nós é que a desconhecemos.


Temos de confiar em Deus, Verônica, e ele haverá de nos auxiliar. Não podemos desacreditar...


- Eu não posso confiar em um Deus que permite tantas injustiças e tanta dor...


Abraçando-a mais forte, Thomas ficou calado por um bom tempo; então, segurando o rosto belo e delicado da filha, limpou-lhe as lágrimas e pediu mais uma vez:


- Vamos confiar em Deus. Afinal, houve algo de bom em tudo isso: nós nos encontramos e estamos juntos.


Verônica esboçou leve sorriso, depois baixou a cabeça e chorou sentida. Estavam ainda juntos quando Boris bateu à porta:


- Vamos, Verônica, tenho trabalho para você. 


Thomas abriu e o jovem padre o fitou, empertigado:

- O que faz aqui?


- Estou visitando a jovem Verônica.


- Sua filha, não é? 


-Sim.

- Pois é bom que não interfira em meus métodos. 


Ela é minha responsabilidade, e pretendo ensinar-lhe, a meu modo, como se serve à Igreja. Haverá de ser mais humilde e obediente, isso será mesmo!

- Ela está muito machucada, Boris. Apenas dê-lhe um tempo para se recuperar.


- Venha, Verônica. Vamos limpar a capela hoje.


A jovem arregalou os olhos e, mostrando as mãos, questionou:


- Como poderei limpar algo, com as mãos neste estado?


- Que limpe com a boca, com os pés! Vai trabalhar para a Igreja para aprender a ser-lhe útil.


- Por favor, Boris, deixe-me descansar um pouco... 


- Venha, agora!

Thomas fez menção de interferir, mas Boris antecipou-se e avisou:


- Se você se intrometer, Thomas, vai piorar a situação dela. E farei com que seja transferido para bem longe. Talvez para outro continente, quem sabe? Precisamos expandir a mensagem da Igreja por toda a parte...


Fazendo breve pausa, virou-se para Verônica, puxou-a pelo braço e ao saírem dizia:


- Venha, vamos trabalhar, que o seu mal é a preguiça...

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