domingo, 17 de setembro de 2017

Capítulo 23 -Verônica Fitava O Nada

Verônica fitava o nada, enquanto sentia as lágrimas quentes descerem pelo rosto. Deitou-se e, fechando os olhos, chorou amargurada. O que a vida lhe reservara? Somente dor e angústia. 

Depois pensou no pai, de quem a mãe pouco lhe falava; quando o fazia era com carinho e ternura e sempre dizia que ele fora servir a Deus em outras terras. Ela não compreendia, e a mãe não es-clarecia. Deitada sob o teto do monastério, a jovem refletia: então a mãe a enviara ao encontro do pai, e não do primo? Seria mesmo verdade? E por que o pai não lhe dissera nada? Afinal, como poderia ser um padre da Igreja, e com o conhecimento do arcebispo? Sentia-se confusa e triste. Depois de chorar muito, acabou por adormecer.

Duas semanas se passaram. A rotina de Verônica era desgastante: levantava-se por volta de cinco horas da manhã e seguia direto para a capela, onde fazia suas preces junto com outras noviças e freiras. 


Então seguiam em absoluto silêncio até uma grande sala de refeições; a uma mesa enorme, todas faziam o desjejum sem qualquer barulho. Logo em seguida ela começava sua jornada de trabalho, que incluía limpar o chão dos corredores, dos quartos e dos demais cômodos, enfim, do grande mosteiro. Antes do almoço ela se lavava e retornava à capela, para mais orações. Depois do almoço, nova rodada de trabalho, desta vez na cozinha. 

E assim que começava a escurecer, jantava e ia direto para o quarto. Presa naquela rotina diária, sentia-se prestes a enlouquecer. Naquela noite, em especial, quando voltou para o quarto, sentou-se na cama, desalentada. Sentia que suas forças se esvaíam e estava quase desfalecendo. Sem ânimo para se vestir para dormir, permaneceu longo tempo sentada. Então, bateram na porta.

- O que deseja, irmã Adriana? - ela disse. 


- Estou muito cansada e me preparando para dormir.

Uma voz de homem respondeu:


- Sei que está cansada, minha filha, mas deixe-me entrar. Ela se levantou e foi até a porta:


- Quem é você?


O homem baixou ligeiramente a voz ao dizer:


- Sou padre Thomas. Abra, por favor.


- O que deseja?


- Preciso falar com você. Somente um instante.


- Não posso falar com ninguém, padre. Estou aqui, reclusa. Não vê minha situação? Todas as moças estão juntas num mesmo quarto, mas eu permaneço isolada.


- Eu sei, filha. Mas tenho algo que lhe pertence.


Curiosa, Verônica entreabriu a porta e reconheceu de imediato o semblante do padre que a recepcionara no dia de sua chegada. Seu coração disparou e parecia querer sair-lhe pela boca. Pela pequena fresta da porta aberta o fitava, quando ele insistiu:


- Deixe-me entrar, Verônica.


Enfim ela abriu mais a porta e o padre logo entrou, fechando-a. Verônica se afastou, sem desviar o olhar daquele homem, em quem via seus próprios olhos e a mesma cor dos seus cabelos. Padre Thomas aproximou-se um pouco mais e pediu:


- Não tenha medo, estou aqui para oferecer meu apoio.


- Um pouco tarde, não acha?


- Nunca é tarde, filha.


- Pois para mim é. Minha vida está destruída. E tudo por quê? Porque vim para este lugar...


- Sei que está sofrendo, porém precisa aprender a acalmar seu coração e a confiar em Deus. Ele sabe o que é melhor para nós.


- Não posso aceitar a vida que estou levando.


- Sua mãe a enviou para cá para protegê-la, e você sabe disso.


- Proteger-me do quê?


- De seu dom.


- Do que está falando? - De sua capacidade de ver e falar com pessoas que já morreram, de prever o futuro, de saber fatos que aconteceram em locais distantes, totalmente desconhecidos por você.


- Não me lembro de nada disso...


- Você é sonâmbula e faz isso enquanto dorme, Verônica.


- Como sabe?


- Sua mãe me contou em diversas ocasiões.


- Como, se nunca vi os dois juntos?


- Eu a encontrava rapidamente quando passava pelo vilarejo, em alguma viagem. Foram poucas as vezes, mas nos vimos e ela me contou sobre o que ocorria com você. Sua mãe se preocupava bastante com seu futuro, com sua segurança, e por isso não teve escolha, a não ser enviá-la para cá. Ela sabia que assim, mais perto, eu poderia tomar conta de você.


Baixando a cabeça, Verônica guardou silêncio. 


Padre Thomas deu seqüência à narrativa:

- Eu e sua mãe nos conhecemos antes de eu me tornar padre e nos apaixonamos. Minha família, constituída por nobres, planejava que eu servisse à Igreja, contudo, meu coração pertencia a Geórgia, não mais a mim mesmo. A família de sua mãe era de camponeses, gente simples e honesta. Meus pais não admitiam sequer a hipótese de nos casarmos. E quando descobriram que ela possuía capacidade semelhante à sua meu pai ameaçou entregá-la à Inquisição, caso eu insistisse em vê-la. Disse inclusive que, se decidíssemos fugir, nos caçaria até o fim do mundo e a entregaria à Inquisição. 


Geórgia via espíritos até desperta, e ficava completamente tomada pelas visões. O padre silenciou brevemente, e Verônica balbuciou:

- Eu sei... Presenciei o fato algumas vezes.


- Eu era jovem e não sabia ao certo o que fazer. 


Tentando protegê-la, aceitei sagrar-me padre. Meu pai ficou satisfeito e acalmou-se. Antes, entretanto, decidi encontrar-me com ela uma última vez e explicar-lhe o que se passava. Foi aí que descobri que ela esperava um filho... você, Verônica.

Lágrimas desciam dos olhos do padre. Verônica o escutava com atenção e ele prosseguiu.


- Eu não podia fazer nada... Não podia casar-me com ela, como desejava, porque se o fizesse minha família a destruiria. Nós dois concordamos, então, que ela deveria ir para longe de Praga, para algum lugar distante, onde pudesse criar você. Eu lhe dei todo o dinheiro que consegui, bem como adquiri uma pequena propriedade, onde vocês passaram a residir. No dia em que ela partiu, antes ainda de você nascer, entreguei-lhe isto. Padre Thomas depositou o escapulário nas mãos de Verônica e fechou-as, enquanto continuava:


- Sempre que podia, passava lá para vê-la, sem jamais me aproximar muito, temeroso das conseqüências que isso poderia acarretar a ela e depois a você.


Ele emudeceu por longo tempo. Depois, acariciando-lhe os cabelos dourados, disse:


- Sinto muito, minha filha, por tudo o que você já sofreu. Sinto não lhe ter dado tudo o que eu desejava. Não foi possível... Não tive a coragem suficiente para lutar contra todos. 


Tive muito medo por sua mãe e por você. Eu já presenciei diversas ações da Inquisição e sei do que é capaz. Não poderia permitir que vocês se expusessem a qualquer risco. Consegui proteger sua mãe e você. 

Mesmo meu pai sabendo de tudo, fiz um acordo com ele para que nada as atingisse, se me mantivesse a serviço da Igreja. E aqui estou, cumprindo minha parte. Meu pai também cumpriu a dele, enquanto estava vivo. Há dois anos morreu, e o cerco começou a se fechar sobre você e sua mãe. 

Só aqui você poderia estar em relativa segurança. 

Abraçando-a com profundo carinho, pediu:

- Não duvide do meu amor por você, filha.


Verônica fitou o pai com seus grandes olhos azuis e indagou:


- Essa injustiça nunca terá fim? A Igreja seguirá abusando do poder, sem pensar em nada e em ninguém? Onde está Deus que não faz nada?


- Deus está sempre perto de nós, filha.


- Mas como?


- Ele envia seus mensageiros para orientar os homens. Existe um padre em Praga que está se levantando para falar sobre os abusos da Igreja, os absurdos que são feitos em nome de Deus. Ele traz alguma esperança aos corações daqueles que, como nós, se sentem oprimidos pelo poder esmagador da Igreja.


Limpando as lágrimas, a moça indagou:


- Quem é ele?


- Jan Huss.


- Acho que vi esse nome entre as coisas de minha mãe.


- Dei a ela cópia de alguns manuscritos que ele escreveu. Geórgia desejava ardentemente que mudanças acontecessem. Ela não sabia ler muito bem, mas esforçava-se para tentar ler os manuscritos de Huss. Onde estão eles?


Verônica abriu uma pequena caixa que pertencera à mãe e mostrou os manuscritos. Ele comentou:


- Você saber ler, não é?


- Um pouco. 


-Então aproveite para conhecer os escritos de Huss. Sei que lhe farão bem, filha. E lembre-se de pedir por ele em suas preces... Se prosseguir com suas declarações, precisará do apoio de todos.

Ambos se conservaram em silêncio por alguns minutos, até que o padre anunciou:


- Agora é prudente que eu vá. Não perca as esperanças. Sobretudo, não perca a fé em Deus.


Apertando o escapulário que mantinha entre as mãos, Verônica perguntou:


- O arcebispo vai tirá-lo de mim outra vez?


- Por ora, guarde-o em algum lugar seguro, da mesma forma que os escritos de Huss. O arcebispo o aceita, mas sei que não comunga das suas idéias. 


Guarde o escapulário com carinho. Ele é seu, minha filha, não importa o que qualquer um diga a respeito disso.

- E o arcebispo? O que fará se souber que não tem mais a jóia?


- Não se preocupe. Deixe que me entendo com ele. Verônica fitou o pai e indagou:


- Não pode ajudar-me a fugir daqui?


- Eu gostaria muito... Acontece que seu primo tem forte ascendência junto ao arcebispo e o convenceu plenamente de que seu lugar é aqui, para que possa redimir-se de seus pecados contra a Igreja.


- Isso não é verdade...


- Eu sei que é um equívoco, mas Boris é influente e não sei por que motivo cismou que você deve ser freira, para ser protegida de si mesma...


- É um absurdo...


- São muitos os absurdos, Verônica, ainda muito maiores do que este nosso drama pessoal.


Dirigindo-se para a porta, ele se despediu:


- Agora devo ir, filha. Boa noite.


Hesitante, a jovem só respondeu depois que a pesada porta se fechou:


- Boa noite... pai...


Verônica pôde escutar os passos do pai que acabara de conhecer se afastarem pelo longo e úmido corredor. Buscou, então, os escritos de Jan Huss e sentou-se na cama. Com a vela que iluminava o ambiente já bem pequena, mesmo assim ela começou a ler os textos. Quando a luz se apagou por completo, ajeitou-se entre as cobertas e pela primeira vez em muito tempo sorriu antes de pegar no sono.

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