CapÃtulo 25 - Três Anos Se Passaram
Três anos se passaram. Verônica buscava, em vão, meios de fugir do mosteiro. Resistia às constantes fustigadas de Boris e não se dobrava interiormente. Ao contrário, sentia-se cada vez mais inconformada. Naquela manhã, Thomas a observou demoradamente enquanto Boris celebrava a missa. Parecia bem mais velha do que quando chegara. Seu olhar era triste, sem brilho e sem esperança. Suas mãos haviam ficado ásperas pelo trabalho incessante. Muito mais do que isso, seu coração ia endurecendo diante das reiteradas agressões que sofria do primo. A vida como prisioneira da Igreja a revoltava profunda-mente.
Quando a missa terminou, a jovem voltou para o quarto. Thomas foi vê-la:
- Você parece ainda mais triste hoje, filha.
Dobrando mecanicamente as roupas que tinha sobre a cama, ela comentou:
- Hoje faz três anos que minha mãe morreu.
- E verdade. Havia me esquecido.
- Pois eu não me esqueço. Faz três anos que vivo neste inferno. E, agora, sou uma freira! Eu, uma freira!
Thomas aproximou-se, afagou-lhe o rosto com ternura e falou:
- Verônica, eu e mais dez padres estamos organizando um orfanato para cuidar de crianças órfãs. O rei Venceslau apóia a iniciativa e hoje à tarde inauguraremos a casa onde serão abrigadas.
Você não gostaria de ajudar? De dedicar algum tempo a essas crianças?
- Eu, pai? Já não acha que trabalho bastante aqui?
- Se quiser trabalhar conosco, posso interceder junto ao arcebispo para que destine parte de seu tempo a cuidar dos pequeninos sem lar. Certamente seria um trabalho muito mais prazeroso para você.
O que acha? Poderia sair, de vez em quando.
Verônica fitou o pai e a idéia da fuga lampejou em sua mente.
- Eu poderia sair todos os dias?
- Não, somente nos dias em que irá contribuir com o orfanato. Umas duas ou três vezes por semana. As crianças precisam de cuidados de mãe...
Verônica pensou um pouco, andou de um lado a outro, sentou-se novamente na cama e afinal, fixando os olhos do pai com seus grandes olhos azuis, disse:
- Eu quero.
- Ótimo, filha. Sei que sua mãe aprovaria sua decisão. Vou conversar com o arcebispo. Você está aqui há três anos e certamente se tem comportado condignamente. Isso será favorável ao meu pedido por você. Nunca mais andou à noite, não é?
- Não. Desde que cheguei aqui, sinto-me tão exausta e desolada... Nunca mais acordei fora de minha cama nem tive aquelas ausências prolongadas e estranhas.
- E tem sentido alguma outra coisa estranha?
- O que, por exemplo?
- Eu não sei. Qualquer coisa.
- Não. Só sinto tristeza e... ódio.
- Verônica, não fale assim. O ódio não é bom conselheiro. Ele nos prejudica e é contrário aos ensinos de Jesus.
- Diz isso porque não sabe o que eu tenho passado, o que tenho sofrido...
- Minha filha, deve aprender a abrandar o seu coração. É o único modo de sermos felizes:
aceitando a vontade de Deus...
- Pois eu não aceito! Não posso aceitar... Deus só me tem feito sofrer...
Thomas permaneceu em silêncio, até que se levantou para sair.
- Preciso ir - disse.
- Quero falar com o arcebispo e ver se consigo a autorização para você colaborar no trabalho com as crianças.
Quando ele deixou o quarto, a filha deitou-se na cama e chorou amargamente. Não demorou muito e Thomas retornou:
- Verônica, tenho boas notÃcias.
A jovem abriu a porta e o pai, sem entrar no quarto, confirmou:
- Consegui a autorização. Três vezes por semana você passará o dia com as crianças. Serão três dias com os pequeninos, que certamente aliviarão o seu coração. E você ficará longe deste lugar por algum tempo. Isso certamente lhe fará bem.
- E Boris, permitiu que eu vá?
- Ele acabou concordando. Neste momento, o arcebispo está mais interessado nos problemas da Igreja do que nas querelas de Boris.
- Que problemas?
- Jan Huss. - O que ele fez?
- Está insuflando o povo e o clero contra a Igreja.
Verônica mostrou-se interessada:
- Insuflando como?
- Bem, embora não o faça diretamente, o tempo todo aponta as falhas, as incongruências, os desmandos da Igreja. Suas missas na Capela de Belém têm atraÃdo milhares de pessoas. O povo de Praga o apoia e bebe suas palavras. O arcebispo está contrariado. Ele era muito próximo de Huss, mas sei que atualmente pouco se falam. As relações entre os dois esfriaram.
Verônica ficou pensativa, depois indagou:
- Ele fala na Capela de Belém em nossa própria lÃngua e não em latim? É isso mesmo?
- Sim, e as pessoas vêm de longe para ouvi-lo. Ele tem influenciado os ouvintes e o povo de Praga o apoia contra os abusos da Igreja. Huss, de fato, deu voz às insatisfações do povo, da nobreza e até de alguns membros do clero que não pactuam com o que se tem feito dentro da Igreja.
- E você, pai, o que pensa?
- Apesar de apreciar Jan Huss, sinto que ele se expõe demais.
- E ele não teme?
- Parece tão confiante como se nada o pudesse atingir.
- Homem interessante.
- Sim, e corajoso.
- Gostaria de ouvi-lo.
- Seja paciente. Deixe seu trabalho com as crianças se firmar. Depois vejo se, com a apreciação de sua colaboração, consigo uma autorização para levá-la à capela de Belém.
Ficaram mais um pouco a conversar, e então Thomas comunicou:
- Tenho de ir agora. Logo mais venho para irmos juntos.
- Eu irei sempre com você? Todas as vezes?
- Essa é uma das condições para que possa sair: vai e volta comigo. Aliás, eles me advertiram: se não voltar, a responsabilidade será toda minha. E as conseqüências, funestas.
Verônica empalideceu. Segurando o braço do pai, ela perguntou:
- Como assim, funestas?
- Se algo der errado em seu trabalho, serei responsabilizado e punido.
- Punido como?
- Do modo que parecer melhor a Boris. Essa foi a condição imposta pelo arcebispo, com a concordância de seu primo.
- Ele me persegue!
Parece que lê meus pensamentos... Olhando-a com ternura, Thomas considerou:
- Não é difÃcil adivinhar-lhe as possÃveis intenções.
Boris está atento a todos os seus movimentos.
- Por que age assim comigo?
- Eu não sei, filha. De qualquer forma, prepare-se.
Será um belo passeio. É inverno e o rio está completamente congelado. Você apreciará a cidade no inverno.
Verônica não disse mais nada. Sentou-se na cama e escutou o pai se afastando pelo longo corredor.
Logo após o almoço, cumpriu suas obrigações na cozinha, lavando os pratos e limpando o chão.
Quando saÃa da cozinha, Boris a procurou e, aproximando-se, alertou:
- E bom que tenha juÃzo em suas saÃdas.
O arcebispo aprovou sua contribuição no orfanato, porque precisamos de mulheres lá para auxiliar as crianças. Contudo, eu continuo atento aos seus movimentos.
- Eu sei bem disso, Boris.
- E bom que saiba mesmo. Estou observando você.
Verônica silenciou. Seus olhos faiscavam de rancor e o primo comentou:
- Não adianta nutrir toda essa raiva por mim... Você está em minhas mãos...
Ela o fitou firme nos olhos, como a enfrentá-lo:
- Eu nunca tive nada contra você, Boris, o que já não é o seu caso.
Você, sim, me odeia. Por quê?
O que fiz para que me trate dessa maneira?
Como ele fizesse menção de deixar a cozinha, ela, contrariando todas as normas do mosteiro, segurou-lhe o braço e insistiu:
- Não fuja. Diga, o que lhe fiz? Por que me odeia tanto? Desvencilhando-se das mãos da prima, ele, sem olhá-la, disse enquanto se afastava:
- Não lhe devo satisfações. Faço tudo pelo seu bem, pois você precisa se dobrar, precisa se dobrar à Igreja...
Boris se afastou e Verônica teve vontade de atacá-lo com uma faca, que estava próxima, mas foi subitamente distraÃda pelo chegada do pai:
- Está na hora de irmos.
Desviando a atenção de Boris, ela respondeu:
- Sim, claro, vou até o quarto pegar um agasalho e já volto. Logo os dois, de braços dados, cruzavam os portões do mosteiro.
Ao sair da construção e alcançar a rua, Verônica respirou fundo. O vento gelado em seu rosto, o aroma da vida fora do mosteiro encheram seus olhos de lágrimas. Fazia três anos que não colocava os pés fora daquele prédio. Enxugou as lágrimas e o pai, notando sua reação, perguntou:
- O que foi, por que está chorando?
Ela não respondeu de pronto. Tornou fôlego, e depois disse:
- Faz três anos que não saio daquele mausoléu. Sorrindo, Thomas corrigiu:
- Não fale assim do mosteiro.
- E um lugar horrÃvel, pai. Você realmente gosta de viver ali?
- Eu gosto de servir a Deus, filha. E fico feliz por poder estar perto de você. Isso me basta.
Verônica pensou por alguns instantes e confessou:
- Eu gostaria de ser assim...
Os dois caminharam até uma casa não muito distante e, junto com outros padres e freiras, realizaram a inauguração das atividades do orfanato. Acolhiam já desde o inÃcio 34 crianças.
A tarefa transcorreu com tranqüilidade e, ao retornarem, o pai indagou:
- E então, o que achou?
- Interessante.
- Como se sentiu ao cuidar das crianças? Dar-lhes banho, alimentá-las e ensinar-lhes sobre Jesus?
- Foi melhor do que esfregar o chão do mosteiro.
- Não sentiu nada além disso? Não consegue ver a necessidade daquelas crianças? Não percebe o quanto elas precisam de ajuda, de proteção e de carinho?
- Também preciso de tudo isso!
- Não é capaz enxergar nada além de você mesma?
Chocada com aquela observação, Verônica estacou.
Entre a raiva e a vergonha, não sabia o que responder ao pai. Thomas aguardou por alguns mo-mentos e, diante da sua mudez, tomou-a pelo braço:
- Vamos, temos horário para chegar ao mosteiro. E balançando a cabeça em desaprovação, advertiu:
- Precisa olhar um pouco para as outras pessoas, Verônica. Todos temos nossos problemas e nossas dores. Não é só você que sofre no mundo. E mais do que isso: se deixar a bondade envolver seu coração e pedir o amparo de Deus, você se sentirá feliz em ajudar os outros e isso a fará não somente uma pessoa melhor, mas agraciada pelas bênçãos divinas. Pare com essa raiva e aproveite a oportunidade de colaborar, de ser útil, de fazer algo pelos que necessitam.
Como já se acercavam dos portões do mosteiro, Verônica apertou o passo, deixando o pai para trás; tão logo ele abriu o portão, a jovem entrou depressa, sem o esperar. Thomas não disse nada, apenas olhou a filha se afastando. Suspirou profundamente e, apertando o crucifixo que trazia no bolso, murmurou:
- Vou rezar por você, filha. Você precisa mudar...
domingo, 17 de setembro de 2017
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