domingo, 17 de setembro de 2017

Capítulo 25 - Três Anos Se Passaram

Três anos se passaram. Verônica buscava, em vão, meios de fugir do mosteiro. Resistia às constantes fustigadas de Boris e não se dobrava interiormente. Ao contrário, sentia-se cada vez mais inconformada. Naquela manhã, Thomas a observou demoradamente enquanto Boris celebrava a missa. Parecia bem mais velha do que quando chegara. Seu olhar era triste, sem brilho e sem esperança. Suas mãos haviam ficado ásperas pelo trabalho incessante. Muito mais do que isso, seu coração ia endurecendo diante das reiteradas agressões que sofria do primo. A vida como prisioneira da Igreja a revoltava profunda-mente.

Quando a missa terminou, a jovem voltou para o quarto. Thomas foi vê-la:


- Você parece ainda mais triste hoje, filha.


Dobrando mecanicamente as roupas que tinha sobre a cama, ela comentou:


- Hoje faz três anos que minha mãe morreu.


- E verdade. Havia me esquecido.


- Pois eu não me esqueço. Faz três anos que vivo neste inferno. E, agora, sou uma freira! Eu, uma freira!


Thomas aproximou-se, afagou-lhe o rosto com ternura e falou:


- Verônica, eu e mais dez padres estamos organizando um orfanato para cuidar de crianças órfãs. O rei Venceslau apóia a iniciativa e hoje à tarde inauguraremos a casa onde serão abrigadas.


Você não gostaria de ajudar? De dedicar algum tempo a essas crianças?

- Eu, pai? Já não acha que trabalho bastante aqui?


- Se quiser trabalhar conosco, posso interceder junto ao arcebispo para que destine parte de seu tempo a cuidar dos pequeninos sem lar. Certamente seria um trabalho muito mais prazeroso para você.


O que acha? Poderia sair, de vez em quando.

Verônica fitou o pai e a idéia da fuga lampejou em sua mente. 


- Eu poderia sair todos os dias?

- Não, somente nos dias em que irá contribuir com o orfanato. Umas duas ou três vezes por semana. As crianças precisam de cuidados de mãe...


Verônica pensou um pouco, andou de um lado a outro, sentou-se novamente na cama e afinal, fixando os olhos do pai com seus grandes olhos azuis, disse:


- Eu quero.


- Ótimo, filha. Sei que sua mãe aprovaria sua decisão. Vou conversar com o arcebispo. Você está aqui há três anos e certamente se tem comportado condignamente. Isso será favorável ao meu pedido por você. Nunca mais andou à noite, não é?


- Não. Desde que cheguei aqui, sinto-me tão exausta e desolada... Nunca mais acordei fora de minha cama nem tive aquelas ausências prolongadas e estranhas.


- E tem sentido alguma outra coisa estranha?


- O que, por exemplo?


- Eu não sei. Qualquer coisa.


- Não. Só sinto tristeza e... ódio.


- Verônica, não fale assim. O ódio não é bom conselheiro. Ele nos prejudica e é contrário aos ensinos de Jesus.


- Diz isso porque não sabe o que eu tenho passado, o que tenho sofrido...


- Minha filha, deve aprender a abrandar o seu coração. É o único modo de sermos felizes: 


aceitando a vontade de Deus...

- Pois eu não aceito! Não posso aceitar... Deus só me tem feito sofrer...


Thomas permaneceu em silêncio, até que se levantou para sair.


- Preciso ir - disse. 


- Quero falar com o arcebispo e ver se consigo a autorização para você colaborar no trabalho com as crianças.

Quando ele deixou o quarto, a filha deitou-se na cama e chorou amargamente. Não demorou muito e Thomas retornou:


- Verônica, tenho boas notícias.


A jovem abriu a porta e o pai, sem entrar no quarto, confirmou:


- Consegui a autorização. Três vezes por semana você passará o dia com as crianças. Serão três dias com os pequeninos, que certamente aliviarão o seu coração. E você ficará longe deste lugar por algum tempo. Isso certamente lhe fará bem.


- E Boris, permitiu que eu vá?


- Ele acabou concordando. Neste momento, o arcebispo está mais interessado nos problemas da Igreja do que nas querelas de Boris.


- Que problemas?


- Jan Huss. - O que ele fez?


- Está insuflando o povo e o clero contra a Igreja. 


Verônica mostrou-se interessada:

- Insuflando como?


- Bem, embora não o faça diretamente, o tempo todo aponta as falhas, as incongruências, os desmandos da Igreja. Suas missas na Capela de Belém têm atraído milhares de pessoas. O povo de Praga o apoia e bebe suas palavras. O arcebispo está contrariado. Ele era muito próximo de Huss, mas sei que atualmente pouco se falam. As relações entre os dois esfriaram.


Verônica ficou pensativa, depois indagou:


- Ele fala na Capela de Belém em nossa própria língua e não em latim? É isso mesmo?


- Sim, e as pessoas vêm de longe para ouvi-lo. Ele tem influenciado os ouvintes e o povo de Praga o apoia contra os abusos da Igreja. Huss, de fato, deu voz às insatisfações do povo, da nobreza e até de alguns membros do clero que não pactuam com o que se tem feito dentro da Igreja.


- E você, pai, o que pensa?


- Apesar de apreciar Jan Huss, sinto que ele se expõe demais.


- E ele não teme?


- Parece tão confiante como se nada o pudesse atingir.


- Homem interessante.


- Sim, e corajoso.


- Gostaria de ouvi-lo.


- Seja paciente. Deixe seu trabalho com as crianças se firmar. Depois vejo se, com a apreciação de sua colaboração, consigo uma autorização para levá-la à capela de Belém.


Ficaram mais um pouco a conversar, e então Thomas comunicou:


- Tenho de ir agora. Logo mais venho para irmos juntos.


- Eu irei sempre com você? Todas as vezes?


- Essa é uma das condições para que possa sair: vai e volta comigo. Aliás, eles me advertiram: se não voltar, a responsabilidade será toda minha. E as conseqüências, funestas.


Verônica empalideceu. Segurando o braço do pai, ela perguntou:


- Como assim, funestas?


- Se algo der errado em seu trabalho, serei responsabilizado e punido.


- Punido como?


- Do modo que parecer melhor a Boris. Essa foi a condição imposta pelo arcebispo, com a concordância de seu primo. 


- Ele me persegue! 

Parece que lê meus pensamentos... Olhando-a com ternura, Thomas considerou:

- Não é difícil adivinhar-lhe as possíveis intenções. 


Boris está atento a todos os seus movimentos.

- Por que age assim comigo?


- Eu não sei, filha. De qualquer forma, prepare-se.


Será um belo passeio. É inverno e o rio está completamente congelado. Você apreciará a cidade no inverno.

Verônica não disse mais nada. Sentou-se na cama e escutou o pai se afastando pelo longo corredor. 


Logo após o almoço, cumpriu suas obrigações na cozinha, lavando os pratos e limpando o chão. 

Quando saía da cozinha, Boris a procurou e, aproximando-se, alertou:

- E bom que tenha juízo em suas saídas. 


O arcebispo aprovou sua contribuição no orfanato, porque precisamos de mulheres lá para auxiliar as crianças. Contudo, eu continuo atento aos seus movimentos.

- Eu sei bem disso, Boris.


- E bom que saiba mesmo. Estou observando você. 


Verônica silenciou. Seus olhos faiscavam de rancor e o primo comentou:

- Não adianta nutrir toda essa raiva por mim... Você está em minhas mãos...


Ela o fitou firme nos olhos, como a enfrentá-lo:


- Eu nunca tive nada contra você, Boris, o que já não é o seu caso. 


Você, sim, me odeia. Por quê? 

O que fiz para que me trate dessa maneira?

Como ele fizesse menção de deixar a cozinha, ela, contrariando todas as normas do mosteiro, segurou-lhe o braço e insistiu:


- Não fuja. Diga, o que lhe fiz? Por que me odeia tanto? Desvencilhando-se das mãos da prima, ele, sem olhá-la, disse enquanto se afastava:


- Não lhe devo satisfações. Faço tudo pelo seu bem, pois você precisa se dobrar, precisa se dobrar à Igreja...


Boris se afastou e Verônica teve vontade de atacá-lo com uma faca, que estava próxima, mas foi subitamente distraída pelo chegada do pai:


- Está na hora de irmos.


Desviando a atenção de Boris, ela respondeu:


- Sim, claro, vou até o quarto pegar um agasalho e já volto. Logo os dois, de braços dados, cruzavam os portões do mosteiro.


Ao sair da construção e alcançar a rua, Verônica respirou fundo. O vento gelado em seu rosto, o aroma da vida fora do mosteiro encheram seus olhos de lágrimas. Fazia três anos que não colocava os pés fora daquele prédio. Enxugou as lágrimas e o pai, notando sua reação, perguntou:


- O que foi, por que está chorando?


Ela não respondeu de pronto. Tornou fôlego, e depois disse:


- Faz três anos que não saio daquele mausoléu. Sorrindo, Thomas corrigiu:


- Não fale assim do mosteiro.


- E um lugar horrível, pai. Você realmente gosta de viver ali?


- Eu gosto de servir a Deus, filha. E fico feliz por poder estar perto de você. Isso me basta.


Verônica pensou por alguns instantes e confessou:


- Eu gostaria de ser assim...


Os dois caminharam até uma casa não muito distante e, junto com outros padres e freiras, realizaram a inauguração das atividades do orfanato. Acolhiam já desde o início 34 crianças. 


A tarefa transcorreu com tranqüilidade e, ao retornarem, o pai indagou:

- E então, o que achou?


- Interessante.


- Como se sentiu ao cuidar das crianças? Dar-lhes banho, alimentá-las e ensinar-lhes sobre Jesus?


- Foi melhor do que esfregar o chão do mosteiro.


- Não sentiu nada além disso? Não consegue ver a necessidade daquelas crianças? Não percebe o quanto elas precisam de ajuda, de proteção e de carinho?


- Também preciso de tudo isso!


- Não é capaz enxergar nada além de você mesma?


Chocada com aquela observação, Verônica estacou. 


Entre a raiva e a vergonha, não sabia o que responder ao pai. Thomas aguardou por alguns mo-mentos e, diante da sua mudez, tomou-a pelo braço:

- Vamos, temos horário para chegar ao mosteiro. E balançando a cabeça em desaprovação, advertiu:


- Precisa olhar um pouco para as outras pessoas, Verônica. Todos temos nossos problemas e nossas dores. Não é só você que sofre no mundo. E mais do que isso: se deixar a bondade envolver seu coração e pedir o amparo de Deus, você se sentirá feliz em ajudar os outros e isso a fará não somente uma pessoa melhor, mas agraciada pelas bênçãos divinas. Pare com essa raiva e aproveite a oportunidade de colaborar, de ser útil, de fazer algo pelos que necessitam.


Como já se acercavam dos portões do mosteiro, Verônica apertou o passo, deixando o pai para trás; tão logo ele abriu o portão, a jovem entrou depressa, sem o esperar. Thomas não disse nada, apenas olhou a filha se afastando. Suspirou profundamente e, apertando o crucifixo que trazia no bolso, murmurou:


- Vou rezar por você, filha. Você precisa mudar...

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