domingo, 17 de setembro de 2017

Capítulo 22 - O Inverno

O Inverno de 1402 se anunciava dos mais rigorosos. O dia amanheceu muito frio. A neve cobria as ruelas da esplêndida cidade de Praga e o ar gelado dificultava a respiração dos caminhantes. O extenso rio Vltava, congelado, transformara-se na sensação das crianças e dos jovens, que adoravam andar sobre ele durante o período em que assim permanecia.

A reforma da bonita capela estava quase terminada.


Venceslau9 veio pessoalmente supervisionar o andamento das obras. Depois de caminhar por todo o interior da capela, comentou, ao sair:

- Quando poderão entregá-la pronta?


- Dentro de três ou quatro meses, majestade.


- Por que tanto tempo? Já está quase tudo feito!


O arquiteto responsável calou-se, enquanto o rei meditou um pouco antes de determinar:


- Contratem mais homens, se isso resolver. Quero que me entreguem a capela no máximo em dois meses. Vou colocá-la logo para funcionar!


Um dos arquitetos adiantou-se e disse, resoluto:


- Vamos providenciar mais homens para abreviar os trabalhos de renovação da capela.


- Muito bem! Têm dois meses.


Ao entrar na carruagem, comentou com a esposa, que o aguardava:


- Mais dois meses e estará pronta. 


- Está ficando uma beleza, Venceslau. Já decidiu quem vai ser o próximo responsável por ela?

O jovem rei pensou por instantes, visualizando a figura do homem que havia escolhido, e respondeu:
- Sim, vou colocá-la nas mãos de Jan Huss.


- Excelente! Ninguém poderia ser melhor! Creio que esse é o homem escolhido por Deus para conduzir nossa capela de Belém10. Já contou a ele sobre sua nova responsabilidade?


- Ainda não.


- Pois faça-o logo. Ele ficará feliz.


- Jan tem estado muito ocupado. Suas atribuições como reitor da universidade estão tomando bastante seu tempo.


- Não se preocupe, querido. Sei que ele está decidido a denunciar os abusos da Igreja, e não há melhor modo de fazê-lo do que lhe oferecendo o púlpito da capela, onde vai falar em nossa própria língua, estendendo a todos a possibilidade de compreensão dos serviços religiosos. Ele saberá usá-lo muito bem. Afinal, tem preparo e coragem para enfrentar os clérigos.


Venceslau, atento à manifestação da esposa, fitou-a sério e indagou:


- Acha mesmo?


- Não tenho qualquer dúvida.


O rei silenciou e ela sorriu, detendo-se em minuciosa observação da cape-la, enquanto a carruagem se afastava. A neve começou a cair novamente sobre a cidade, e Vesceslau e a rainha foram direto para o Castelo de Praga, lar da família real da Baviera.


Ao entrar, o soberano ordenou a um de seus mensageiros:


- Quero que mandem chamar Jan Huss. Desejo vê-lo o quanto antes.


Jan Huss, então com 33 anos de idade, havia assumido a reitoria da Facul-dade de Filosofia de Praga e comandava-a com paixão. Fortemente influenciado pelas obras de John Wyclif11, tornou-se abertamente defensor da idéia de que a Igreja precisava passar por profunda mudança, por uma reconstrução espiritual, para retornar à sua essência; não aceitava a supremacia papal, mas a doutrina de que Cristo, e não Pedro, era o chefe da Igreja, considerando o Evangelho como única lei que deveria ser seguida. Sentado a sua mesa, Jan empunhava a pena e escrevia quando o mensageiro do rei lhe bateu à porta:


- Entre.


Cumprimentando-o com sincera simpatia, o jovem mensageiro informou:


- Sua alteza, o rei Venceslau, deseja vê-lo, senhor. 


Quer que jante com ele esta noite.


Jan Huss se levantou e caminhou até a janela. 


Entreabriu-a e logo sentiu no rosto o vento gelado. 

Depois, virou-se para o rapaz e disse:

- É claro que irei ter com o rei. Pode confirmar minha presença à mesa real.


O mensageiro se retirou e o padre ficou fitando pela janela a bela cidade de Praga, que se tornara seu lar; havia muito trocara sua pequena Husinec pela grande cidade. Depois voltou a sentar-se e retornou as notas com as quais preparava uma obra em que denunciava os abusos da Igreja Católica. 


Jan amava o Evangelho com desvelo e recitava-o praticamente de cor. 

Meditava nas lições deixadas por Jesus e encantava-se com a beleza e profundidade daqueles ensinos, que julgava ainda distantes da compreensão dos religiosos de seu tempo. Por alguma razão de que não tinha total clareza, a grande maioria do clero não entendia o Evangelho, tampouco se comprometia em aprofundar suas experiências e meditações sobre Jesus e seus ensinamentos. 

Para ele, a Igreja tornara-se um amontoado de dogmas e regras que serviam aos interesses temporais e terrenos de seus líderes, que estavam muito distantes das verdadeiras lições do Mestre de Nazaré. Jan se preocupava também com o povo e seus sofrimentos. 

Tocado pela dor do próximo, era freqüentemente visto pelas ruas distribuindo mantimentos e conversando com as pessoas, que buscava consolar e atender sempre que podia. Tornara-se um homem respeitado pelo clero e pela nobreza, e amado pelo povo tcheco.

Logo que entardeceu, Jan se dirigiu ao castelo. Sentado à mesa em companhia de Venceslau, da rainha Sofia, do arcebispo de Praga e de alguns membros da nobreza tcheca, o rei informou sua decisão.


- A capela de Belém em breve estará completamente renovada. Quero que assuma sua direção e seu púlpito, Jan.


O padre sorriu.


- Fico extremamente honrado, majestade. Gostaria imensamente de expressar com maior liberdade meus pensamentos a respeito das mudanças que creio serem necessárias à Igreja.


- Pois, com meu consentimento, tão logo a capela esteja pronta, assumirá seu comando e poderá dizer o que pensa sobre a situação da Igreja e apresentar suas idéias para a necessária renovação. Erguendo pesada taça de ouro puro, cravejada com pedras preciosas, Venceslau levantou-se e conclamou:


- Um brinde à nossa capela e ao seu novo líder. 


Tocados os copos, o rei finalizou:

- Saúde.


Com discreto sorriso nos lábios, o arcebispo acompanhava a movimentação. Simpatizava com Jan, embora por vezes o achasse demasiado apaixonado e emotivo. No entanto, acreditava que eram arroubos do jovem pobre de Husinec que em poucos anos se tornara influente e admirado. 


Acompanhava seus mínimos gestos e analisava-os com atenção.

Ao final da celebrada ocasião, despediu-se de seu anfitrião:


- Preciso retirar-me, alteza. O rei objetou.


- Tão cedo?


- Meus deveres são muitos, senhor, preciso mesmo ir.


- Pois então vá, arcebispo.


Antes que o clérigo terminasse de vestir a capa, com vista a proteger-se do intenso frio que fazia fora do palácio, o rei indagou:


- Crê que nossa capela de Belém estará em boas mãos?


- Como não? Jan é um padre estudioso e capacitado, e seu poder de retórica o fará um excelente pregador. Temos o homem apropriado para as funções.


- Fico satisfeito.


- Boa noite, alteza.


Retirando-se, o arcebispo foi direto para o monastério, à procura de Verônica. Assim que chegou, perguntou sobre a jovem. Adriana informou:


- Ela está trancada em seu quarto, senhor.


- Vou até a biblioteca. Traga-a até mim.


Ocupando uma cadeira espaçosa próxima à lareira, o arcebispo ajeitava de leve a lenha quando Verônica, assustada, apareceu à porta. Estendendo-lhe a mão para que a beijasse, o arcebispo convidou:


- Vamos, minha filha, entre.


Como a moça parecia hesitar, ele insistiu:


- Entre. Sente-se, precisamos conversar.


Verônica entrou e se acomodou em uma cadeira de onde o olhava de frente. Ele limpou a garganta e disse, pegando de sobre a mesa uma carta manus-crita:


-Tenho aqui informações sobre a senhorita. Fugiu, não é mesmo?


Verônica observava o religioso em absoluto silêncio. Seus olhos azuis acompanhavam-lhe os menores gestos. Ele ergueu-se, caminhou até bem próximo dela, fitou-lhe o rosto e comentou: 


- E muito bonita, Verônica... Como sua mãe. 

Ouvindo falar da mãe, a jovem animou-se a perguntar:

- Conhecia minha mãe?


- Sim, conhecia-a muito bem. Fez breve pausa, depois prosseguiu:


- Como acha que conseguiu entrar neste mosteiro?


- Não sei. Acho que por causa de meu primo.


- Boris?


- Sim.


Esboçando cínico sorriso, o arcebispo redarguiu:
- Sua entrada neste santuário nada tem a ver com seu primo, muito embora agora ele seja o responsável por você.


O arcebispo se ergueu novamente, caminhou até a moça e pediu:


- Deixe-me ver o escapulário.


Instintivamente, como para proteger a preciosa lembrança que trazia da mãe, ela segurou-o forte sob as vestes e murmurou:


- E um presente de minha mãe. Pertencia a ela e agora é meu. Erguendo ligeiramente a voz, o religioso ordenou:


- Quero vê-lo já! 


-Não!

- Minha jovem, não seja inconseqüente. Sei que não é isso que sua mãe desejaria, por isso mesmo deu a você esse precioso objeto que agora ordeno que me entregue.


Verônica continuou a segurá-lo firme, e o arcebispo acrescentou:


- Tenho um pedido aqui em minhas mãos para entregá-la à Inquisição, a fim de que a investiguem.


Com os olhos arregalados de terror, a jovem ajoelhou-se diante do religioso e implorou:
- Por favor, não faça isso... 


Erguendo-a, ele sussurrou-lhe ao ouvido:

- Então colabore. Deixe que eu veja o escapulário. 


Temerosa, a jovem puxou a pequena peça e colocou-a sobre a roupa. 

O arcebispo tomou-a nas mãos, observou-a atentamente e a arrancou com força do pescoço da jovem, que caiu no chão em prantos, indagando:

- Por que faz isso? O que tem meu escapulário que não pode permanecer comigo? 


Diga-me vossa santidade, explique-me para que eu entenda...

Com a peça presa nas mãos, ele disse:


- E um escapulário muito especial, feito exclusivamente para uns poucos servidores da Igreja; existem apenas cinco.


Retirou de dentro da batina seu próprio escapulário, e Verônica percebeu que eram idênticos. Ele prosseguiu:


- Não deveria estar nas mãos de hereges! 


- Ele pertencia à minha mãe e agora pertence a mim!

- Não. Pertence a seu pai, que jamais o deveria ter dado. Entretanto, apesar dos graves deslizes que ele cometeu, permanece fiel à Igreja. Vou devolver esta jóia ao legítimo dono.


Verônica mal podia respirar.


O arcebispo ergueu-se e caminhando para a porta comentou, antes de sair:


- O padre que a recebeu à porta na outra noite é o verdadeiro dono do escapulário.


Ele saiu, deixando Verônica trêmula pela chocante revelação. Adriana apareceu em seguida e pediu:


- Vamos, precisamos nos recolher; já é muito tarde, venha.


Quase incapaz de se manter sobre as próprias pernas, Verônica andou até o quarto e, sem pronunciar sequer uma palavra, entrou e sentou-se em sua cama, ainda chocada. 



9 Venceslau IV, da casa de Luxemburgo, foi rei da Boêmia e governou entre 1363 e 1419.

10 A capela de Belém foi fundada no ano 1391, como o lugar onde se pregava em checo, e tinha capacidade de albergar 3 mil pessoas.

11 John Wyclif foi professor da Universidade de Oxford, teólogo e reformador religioso inglês, considerado precursor das reformas religiosas que sacudiram a Europa nos séculos XV e XVI. Trabalhou na primeira tradução da Bíblia para o idioma inglês, que ficou conhecida como a Bíblia de Wyclif.

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