domingo, 17 de setembro de 2017

Capítulo 21 - O Ato litúrgico

O ato litúrgico seguia sem contratempos. Verônica assistia a tudo o que ocorria à sua volta como se não estivesse acontecendo com ela. Seu desejo era desaparecer daquele lugar. 

Aquilo lhe parecia um pesadelo. A certa altura, fitou a imagem do Cristo crucificado e, envolvida pela emoção, orou baixinho:

- Jesus, você foi crucificado e sofreu tudo o que não merecia. Sabe melhor do que ninguém o que é sofrer. Ajude-me, por favor... Eu quero sair desta situação e não sei como. Perdoe-me se me julga ingrata, mas não desejo ser freira nem servir à Igreja. Não acredito que a Igreja, tal qual se apresenta hoje, esteja a seu serviço.


Sentindo a angústia aumentar, à medida que a solenidade se encaminhava para o momento de oficializar o ingresso das jovens nos serviços eclesiásticos, ela murmurou:


- Ajude-me, por favor, Jesus. Ajude-me, minha mãe, de onde você estiver... 


Enquanto as lágrimas lhe desciam pelo rosto, ela era conduzida por uma freira ao altar onde receberia a bênção do arcebispo e seria oficialmente recebida pela Igreja. 

Ao lado do arcebispo estava Boris.

Ela foi a última da três jovens e, ao aproximar-se, ouviu-o perguntar ao padre:


- É esta?


- Sim, santidade.


Ele a fitou de cima a baixo e, detendo-se nos olhos, comentou:


- Tem os mesmos olhos irrequietos da mãe. Ante a surpresa de Verônica, chamou:


- Venha, minha filha.


A jovem caminhou devagar. Ao chegar bem perto, ele disse, áspero:


- Quero seu escapulário.


Ela o fitou, incrédula, e o ouviu prosseguir:


-Assim que terminarmos, tire-o e segure-o. 


Quando nos despedirmos e vier me beijar a mão, entregue-o sem que ninguém perceba.

Incapaz de acreditar no que escutava, ela balbuciou, tentando sorrir:


- Pertenceu à minha mãe e é a única lembrança que trago dela. Não, meu senhor, não posso entregá-lo.


E afastou-se depressa, antes que ele pudesse reagir. 


Baixou a cabeça e voltou ao seu lugar próximo às outras noviças. Quando a solenidade terminou, Boris se aproximou dela e disse:

- Não será tão ruim assim, você verá, minha prima.


Ela o encarou sem responder. Depois, levantou-se e seguiu as demais jovens sem dizer nada. 


Acompanhava as outras moças pelo longo corredor, enquanto maquinava como faria para sair dali, para fugir da cidade. Seu coração batia descompassado e suas mãos estavam frias. Desejava ardentemente jamais ter entrado naquele local, naquela armadilha. Finalmente entrou em seu quarto; irmã Adriana fechou a porta, dizendo:

- Amanhã, às cinco horas, virei despertá-la para as orações da manhã. Depois teremos o desjejum e uma longa lista de tarefas a realizar. Assim que ba-ter, deverá levantar-se, entendeu?


Sem suportar mais, explodiu:


- Isto é uma verdadeira prisão! Vocês me transformaram em uma prisioneira!


A freira sorriu e respondeu, irônica:


- Melhor presa aqui do que no tribunal da Inquisição, que é certamente onde estaria neste momento, se não tivesse sido acolhida por nós. 


Agradeça a seu primo e à intervenção dele junto ao arcebispo, que está bastante disposto a colocá-la nas mãos dos inquisidores. Portanto, moça, aquiete-se e aprenda a servir à Igreja com devoção. Quem sabe, com isso, Deus se apiede de você e a perdoe.

Sem esperar resposta, a moça fechou a pesada porta atrás de si e Verônica lançou-se na cama, chorando desesperada. Não demorou muito a ouvir barulho no corredor e logo a porta se abriu. Era Boris. 


Verônica ajeitou-se na cama e perguntou:

- O que quer?


- O arcebispo pediu que viesse buscar o escapulário.


- Não! Isso eu não vou dar.


- Mas por que, criatura?


- E por que ele o quer tanto? O que deseja fazer com uma lembrança querida de minha mãe? Não posso me separar dele!


- Olhe, Verônica, para mim essa medalha nada significa, mas o arcebispo a quer.


Enfurecida, ela ergueu-se e desafiou, altiva:


- Pois então que venha ele mesmo buscá-la e me diga por que deseja tanto uma coisa sem valor para ele, e que para mim vale tanto.


- Deixe-me apenas ver o escapulário. O padre que a recebeu me falou dele.


- Afinal, o que tem de tão especial? Boris insistiu:
- Deixe-me vê-lo. Não vou tirá-lo à força.


De longe, Verônica tirou-o de dentro da blusa e deixou que o primo o visse.


Ele se espantou:


- Não é à toa que o padre deixou-a entrar. Somente a alta cúpula da Igreja possui escapulários azuis, como esse. São extremamente raros e pertencem às mais eminentes personalidades. Onde Geórgia o conseguiu?


Guardando a peça, ela respondeu:


- Não sei, não faço a menor idéia. Minha mãe nunca me disse, mas jamais tirou-o do pescoço. Sempre o usou, desde as mais remotas lembranças eu a via com ele.


- Seria melhor para você não fazer o arcebispo vir até aqui.


- Não se aproxime, Boris, ou vou gritar! Você já me fez muito mal.


Já bem perto da prima, Boris tocou-lhe os cabelos macios e disse, balançando a cabeça:


- Deveria me agradecer, priminha. Estou lhe prestando um grande favor. Sabe que não existiria futuro para você se eu não a estivesse ajudando.


- Se deseja me ajudar mesmo, deixe-me ir embora daqui. Ajude-me a fugir! Não quero viver neste lugar... O jovem padre deu uma gargalhada e andou até a porta, dizendo:


- Você nunca sairá deste lugar, ouviu? Sua vida, agora, pertence à Igreja e também a mim. Vou usá-la de acordo com meus interesses. Afinal, sou seu protetor aqui dentro, e enquanto assim for estará suficientemente protegida. Saiba, porém, que a um estalar de meus dedos você estará em poder da Inquisição. Portanto, pense muito bem e se comporte, minha prima. Faça o que digo e continuará viva.


Antes que o jovem deixasse o quarto, ela indagou, entre lágrimas:


- Por que me detesta tanto?


Ele a fitou, mas seu olhar parecia buscar alguma reminiscência do passado. Por fim, falou:


- Só o que sei é que sempre me provocou verdadeira aversão. Desde o primeiro dia em que pus os olhos em você. Não sei, deve ser algo que faz, o que você é... Talvez seja mesmo o demônio se expressando através de seus atos.


Após tal afirmação, fechou a porta e saiu, deixando-a desconsolada. Muito tempo se passou até que ela adormeceu e recebeu uma visita espiritual; era uma jovem que, sentando-se ao seu lado na cama, disse com doçura:


- Verônica, escute-me.


O corpo espiritual de Verônica se desprendeu e sentou-se, atordoado, ao lado da bela jovem. Ela disse:


- Sinto-me confusa e estranha. Quem é você? Que sensação é esta?


Vendo o próprio corpo adormecido na cama, gritou assustada:


- O que está acontecendo? Estou morta?


- Não, seu corpo físico está dormindo e precisamos conversar.


- Quem é você?


- Sou uma amiga. Verônica, você tem de resignar-se à situação em que se encontra. Não deve arquitetar planos de fuga.


- O que me diz? Se não compreende o desespero que sinto neste lugar, você não pode ser minha amiga!


- Eu compreendo bem seus sentimentos, acredite. 


Ainda assim, sei que você está no lugar em que deveria estar. A vida é muito mais do que as ilusões que alimentamos em torno dela. Nossa vida é eterna. Já tivemos outras existências e muitas outras teremos. Cada uma será o reflexo do bem ou do mal que plantarmos com nossos atos diários.

Limpando as lágrimas, a jovem encarnada afirmou:
- Mas eu não faço o mal.


- Tampouco faz o bem. Está na hora de usar sua sensibilidade e começar a ajudar as pessoas que necessitam. E que melhor lugar do que este, onde a oportunidade de auxiliar acontece dia e noite? 


- Do que está falando?

- Aqui você terá oportunidade de ajudar muitas pessoas. E ainda poderá ser colaboradora de importante obra que está para principiar.


Depois de breve pausa, ela prosseguiu:


- Já ouviu falar de Jan Huss?


- Vagamente.


- Poderá colaborar com ele, se tiver paciência e nos escutar. Verônica segurou a cabeça entre as mãos e disse:


- Não estou entendendo nada...


Afagando-lhe os cabelos, a entidade espiritual esclareceu:


- Você concordou em vir para cá e ficar perto de seu antigo inimigo, de modo a servir-lhe e buscar cultivar sua simpatia e seu perdão.


- De quem está falando?


- Que sentimentos Boris lhe desperta? Verônica pensou um pouco, depois nomeou:


- Medo, tristeza, culpa...


- Exatamente. Em existência pregressa, há muitos séculos, você arquitetou a morte de seu enteado. 


Distanciou-se do bem que poderia ter cultivado e perdeu-se em orgulho e vaidade. Após desencarnar vagou durante séculos, e seu inimigo a perseguiu por escuras cavernas, nas regiões sombrias do planeta. Sofreu muitas dores até ser finalmente resgatada por abnegados servidores da luz. 

Em várias etapas de aprendizado, reencarnou algumas vezes. Por fim, mais preparada, aceitou regressar para resgatar os débitos contraídos com esse inimigo do passado. Agora tem nova oportunidade de convívio, exatamente como desejou. Seja forte.

Peça ajuda a Deus, com sinceridade, e submeta-se à sua vontade amorosa. E para seu próprio bem.

Quando recobrou um pouco de lucidez, percebeu o quanto se desviara da senda que deveria trilhar e arrependeu-se. Não reincida num caminho tortuoso. 

Aprenda a ouvir seu coração. Nós vamos lhe falar através dele. Ouça-nos. Ouça sua consciência. Sua sensibilidade foi intensificada para ajudá-la a nos perceber melhor.

Fazendo grande esforço para compreender o que dizia aquela bela jovem, ela procurou confirmação:


- Quer dizer que prejudiquei Boris em outra vida?


- Muito. Você colocou pai contra filho, e vice-versa. Suas intrigas e insinuações venenosas instilaram desconfiança e ódio entre os dois. E como resultado da intemperança do pai, ele acabou com a vida do filho.


Verônica soltou um grito de horror e murmurou:
- Não pode ser verdade... Não posso ter sido esse monstro... Sorrindo afetuosa, a entidade tomou-lhe as mãos e falou, carinhosa: - Todos já praticamos crimes contra as leis de Deus. Não há um só ser que não tenha cometido erros. Estamos aqui para auxiliá-la a consertar os enganos do passado. Para isso, precisa aprender a perdoar-se, com humildade, e conviver com Boris, buscando ser-lhe útil, ganhando sua simpatia e por fim seu perdão. 


Somente assim poderá refazer esse doloroso momento de sua história. Não conseguirá retomar o caminho da ascensão espiritual enquanto não se redimir com Boris.

Verônica ficou muda por alguns instantes, depois comentou:


- Não consigo me lembrar... Como era o nome dele?


- Ele se chamava Crispus. Verônica arregalou os olhos e gemeu:


- Crispus... Crispus... Sim, eu me lembro...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Introdução - O Mar Estava Agitado O mar estava agitado. A pequena embarcação se afastava com dificuldade, buscando alcançar o navio que ...