CapÃtulo 20 - O Sacerdote
O Sacerdote andava na frente. Verônica o seguia e, a cada passo que dava no interior da portentosa construção, sentia o coração bater mais descom-passado. Suas mãos suavam frio e seu desejo era sumir dali.
À medida que caminhava, olhava as paredes altas e escuras daquela edificação e violentos arrepios lhe percorriam o corpo. Suas pernas estavam trêmulas e temia não conseguir completar a caminhada. De repente, o padre parou, tirou uma chave de um dos bolsos e, abrindo uma porta de madeira maciça, virou-se para ela:
- Espere aqui - disse.
- Vou buscar água e algo para você comer. Ela entrou, e em seguida ele trancou a pesada porta.
Verônica bateu em desespero, suplicando em lágrimas:
- Por favor, padre, o que vai fazer comigo? Por que está me trancando aqui?
Ela gritava e batia com força. A porta se abriu e o padre apareceu, recriminando-a:
- Fique quieta! Vou trazer-lhe comida e já volto.
- Por que me tranca aqui?
- E o que quer? Devo avisar meus superiores. E se você resolve sair andando por esses corredores, antes que eu informe aos responsáveis que está aqui?... Não vou arriscar. Fique aqui, e calada.
Queria ajuda, não queria? Pois bem, está a salvo, seja lá o que for que a esteja perturbando. Agora, acalme-se que vou avisar também seu primo de sua presença.
Verônica o observou desconfiada, medindo-o de cima a baixo, e depois falou num suspiro, enquanto ele fechava a porta:
- O que posso fazer? Tenho de esperar... Ela ouviu a voz do padre:
- Isso mesmo. Aguarde em silêncio, é o melhor que tem a fazer.
Ele se afastou e a jovem observou o pequeno quarto em que estava. Ali havia uma cama, uma mesa e duas cadeiras; sobre a cabeceira da cama um gran-de crucifixo e, acima, uma janela minúscula, por onde alguma claridade entrava. Apesar de ser dia lá fora, o cômodo permanecia na penumbra, deixando ver parcamente os objetos que continha. Verônica acomodou seus pertences em uma cadeira e se sentou na cama. Embrulhou-se nas roupas, tremendo.
Começava a nevar e fazia muito frio dentro do austero aposento. Ela refletiu por alguns instantes, tentando recuperar o controle e compreender o que se passava. Lembrou-se da expressão nos olhos do padre ao notar o escapulário que trazia ao pescoço.
Tirou-o e apertou-o entre as mãos, balbuciando:
- O que este escapulário tem de tão especial? Sei que foi abençoado para proteger minha mãe, por Nossa Senhora, mas... O que o padre viu nele que o levou a me acolher sem vacilar? Não compreendo...
Encafifada, ficou a relembrar que a mãe o usava constantemente; nunca o tirava. Depois de algum tempo, ouviu uma voz de mulher anunciar:
- Trouxe comida.
A porta se abriu e uma jovem freira entrou, colocando pão e água sobre a mesa. Sem olhar para Verônica, a freira saiu, fechando novamente a porta.
Ela se alimentou e voltou a sentar-se na cama.
Cansada, acabou por se aquecer e caiu, por fim, em sono profundo. Transcorrido algum tempo, acordou assustada, ouvindo vozes. Sentou-se rápido na cama, sem entender o que acontecia e mesmo sem atinar onde estava. Tentando se localizar, viu a porta se abrir e um jovem entrar, saudando-a:
- Olá, Verônica.
Logo atrás vinha a freira que antes trouxera a refeição da garota. Verônica fitou o rapaz, buscando na memória identificar aquele rosto que lhe parecia tão familiar. Ao olhar seus olhos, forte e indefinida emoção dominou-a. Teve vontade de chorar e de atirar-se aos seus pés. Ao mesmo tempo, um medo enorme, pavor até, apossou-se dela.
Afastou-se, ficando à cabeceira da cama, mas o jovem aproximou-se e estendeu-lhe a mão, dizendo:
- Não fique assustada. Sou eu, Boris, seu primo.
Verônica, perdida em suas emoções, parecia não escutar. Encolhia-se cada vez mais na cabeceira da cama. Boris parou e falou com voz calma:
- Por que está tão apavorada? Sei que não nos vemos há muitos anos, mas ainda assim deve lembrar-se de mim. Que idade tem agora?
Verônica respondeu mecanicamente:
- Quase dezoito.
- Você deve estar cansada, criança. Veio de longe...
Como conseguiu chegar até aqui?
Ainda temerosa, ela não respondeu. Boris insistiu:
- Não tenha receio, Verônica. Aqui estará segura. Fique calma. Agora quero que me conte tudo o que aconteceu.
Dominada pelo medo e pelo cansaço, ela desabou, entre lágrimas:
- Minha mãe morreu. Não tenho mais ninguém nesta vida. Estou sozinha, abandonada. Estou com medo e não tenho a quem pedir ajuda. Minha mãe me disse que viesse procurá-lo, mas acho que não devia ter vindo...
É que não tinha a quem recorrer...
O padre, homem esguio e de porte nobre, procurou tranquilizá-la:
- Você não está mais sozinha. Fez bem em nos procurar, estará amparada aqui.
Verônica sentia uma vontade quase incontrolável de abraçar o primo e, por outro lado, desejava correr para bem longe. Ficou imóvel enquanto ele a ob-servava, parecendo desconfiado. Depois, ao ouvir tocar o sino, ele ergueu-se e recomendou:
- Agora descanse. Logo mais o bispo celebrará a missa das seis horas e você deve se juntar a nós.
Foi até a porta e, antes de fechá-la, disse:
- A irmã Adriana virá buscá-la mais tarde.
Assim que a porta se fechou, Verônica deitou-se na cama e não pôde controlar as lágrimas. Sentia-se desprotegida e aflita. Aquele breve encontro com o primo não a fizera sentir-se melhor. Sem saber ao certo por que, Boris sempre a assustara, desde que eram pequenos. Nove anos mais velho do que ela, sempre a tratara de maneira rude e agressiva.
Experimentava em relação a ele emoções conflitantes: temor e carinho, medo e desejo de aproximar-se. Definitivamente, não o compreendia e o temia. Crescera distante do primo, que vira poucas vezes; no entanto, guardava em seu Ãntimo forte impressão dos poucos encontros que haviam tido.
Perdida em suas lembranças da infância e vencida pelo cansaço dos últimos dias, Verônica tornou a adormecer. Quando despertou, sentia-se ligeira-mente mais animada. Sentou-se na cama e observou com maior atenção os detalhes do pequenino ambiente que ocupava. A angústia assolar-lhe o coração. Qual seria o seu futuro? Ficaria para sempre presa naquele cubÃculo? Não era o tipo de vida a que aspirava.
Sonhava ter uma famÃlia, filhos - muitos filhos - , um lar e uma vida com fartura; queria viajar, vestir belas roupas... Sim, desejava ardentemente vestir belas roupas. Sempre que encontrava uma dama da nobreza, com seus trajes lindos e vistosos, ficava a desejar o mesmo para si.
A jovem suspirou, lembrou-se da mãe e sussurrou:
- Eu não vou ficar aqui para sempre. Não vou mesmo!
Escutou alguém chegando. Depois de duas leves batidas, a porta se abriu e a freira que já estivera ali disse:
- Boris enviou esta roupa e pediu que a vestisse.
Ao tomá-la nas mãos Verônica viu como era austera e indagou: - Que roupa é esta?
- São os trajes que toda noviça usa ao entrar para a ordem. Depois, ao se tornar freira, veste-se igual a mim.
Verônica ficou sem ação. A freira informou:
- Vista-se. Aguardo lá fora. Assim que estiver pronta me avise, para que eu corte os seus cabelos.
Verônica sentiu o sangue sumir-lhe do rosto.
Adorava seus cabelos - eram lindos, louros, e tinha verdadeira paixão por eles. Porém, antes que pudesse esboçar qualquer objeção, a freira saiu e fechou a porta. A jovem sentou-se na cama sem saber o que fazer. Levantou-se e andou de um lado para outro. Olhou a roupa sobre a cama e colocou-a em frente ao corpo; depois, atirou-a longe, em prantos. Caminhou até onde estava a roupa, pegou-a e sentou-se com ela entre as mãos. Tocou os cabelos e ergueu-se, firme. Foi até a porta, abriu-a e chamou a freira:
- Entre, por favor, preciso falar com você.
- Por que ainda não está pronta? Temos de chegar antes de começarem os serviços religiosos.
- Qual é o seu nome?
- Irmã Adriana.
- E seu nome de batismo?
- Esse é o meu nome de renascimento. Você precisa se vestir.
- Por que quer cortar meus cabelos?
- Todas as noviças fazem isso quando entram para a ordem. E uma maneira de renunciarmos à vaidade e ao orgulho.
- Mas eu não quero ser noviça. Eu não quero ser freira.
- Então, o que veio fazer aqui?
Verônica caminhou de um lado ao outro no quarto. Depois, sentando-se ao lado da freira, desabafou:
- Eu vim porque necessito de proteção. Estou sozinha no mundo e preciso que alguém me ampare.
- Pois então, veio ao lugar certo. Nosso Senhor Jesus Cristo há de protegê-la. Em troca, entregue-lhe sua vida.
- Você não está entendendo. Eu não tenho nenhuma vontade de ser freira. Quero viver a minha vida, tenho sonhos, planos para o futuro. Não quero aca-bar aqui dentro, apodrecendo em um cubÃculo como este.
A freira ergueu-se e, com evidente contrariedade, disse:
- Você acha que todos que estão aqui vieram porque foram chamados por Deus? Não, moça. A grande maioria está aqui por outros motivos. Mas aqui estamos e só nos resta servir à Santa Madre Igreja da melhor maneira.
- Muitos estão aqui obrigados, então?
- Não diria obrigados, e sim compelidos pelas circunstâncias, como no seu caso. Você foi trazida pela vida e o melhor que tem a fazer é conformar-se. Lutar contra o destino causará maior sofrimento ao seu coração. Não foi sua mãe que lhe pediu para vir?
Verônica, sem ânimo para responder, inclinou a cabeça concordando.
- Pois então, ela sabia o que é melhor para você.
Agora vamos, vista-se.
Verônica, resoluta, declarou:
- Não, eu não vou. Você não vai encostar um dedo em meus cabelos. Eu não quero ser freira. Não vou.
Irmã Adriana saiu sem dizer nada. Alguns minutos depois, a porta se abriu de novo e Boris entrou, sério.
- Vista-se e deixe que a irmã Adriana corte os seus cabelos.
- Não posso, não quero ser freira.
- O arcebispo de Praga está lá fora à sua procura.
Ele quer conversar com você e averiguar determinados eventos referentes à sua mãe...
Pretende julgar se você é ou não uma herege, uma bruxa. Foi isso o que me disse.
A jovem empalideceu. Ele continuou:
- Eu lhe disse que você está sob a proteção da irmandade e que se tornará freira. Só assim obtive a concordância dele em deixá-la em paz. Prefere que eu o chame aqui agora, para levá-la?
Quase sem poder respirar, a jovem respondeu:
- Claro que não.
- Pois vista a roupa que lhe enviei e assuma o seu destino. Veio em busca da minha ajuda, e eu posso ajudá-la indicando-a à irmandade para que se torne urna servidora da Igreja; e assim, se seu comportamento for adequado, a Inquisição poderá deixá-la em paz.
Ele silenciou por alguns instantes, depois prosseguiu:
- Então, o que vai ser? Geórgia sabia o que estava fazendo. Ela quis protegê-la. Vamos, vista-se. Você não tem alternativa. Ou assume a nova vida, ou vai ficar sem nenhuma.
Aturdida e sem saber o que fazer, ela pegou a roupa das mãos do primo e ainda insistiu:
- Você não pode fazer alguma coisa? Eu não quero ser freira. Não pode me ajudar de outro modo?
Ele esboçou ligeiro sorriso e respondeu, antes de fechar a porta:
- Até poderia, minha prima, mas sempre achei você e sua mãe muito estranhas. Acho que deve mesmo se tornar uma servidora da Igreja. Eu quero que seja freira, para sua própria proteção. Em seguida, fechou a porta atrás de si e saiu. Verônica sentia o corpo inteiro tremer. Queria sumir dali, o que era impossÃvel. Estava claro que o primo, por alguma razão, a fizera prisioneira. Enquanto as lágrimas lhe corriam pela face, ela trocou de roupa e entreabriu a porta:
- Já me vesti - informou. A freira entrou e disse:
- Muito bem. Sente-se, que vou cortar seus cabelos.
Com uma faca afiada ela começou a cortar as lindas mechas de Verônica. A cada novo corte, os fios caÃam pelo chão e para a jovem era como se um punhal lhe fosse cravado no peito. Sentia que, junto com os cabelos, perdia parte de sua vida. Ao terminar, a freira convidou:
- Pronto. Agora sim, está preparada para tornar-se uma noviça. Venha comigo, e não fale com ninguém. Você deverá fazer voto de silêncio até se tornar freira.
Limpando as lágrimas, a jovem indagou:
- E quanto tempo isso irá levar?
- Isso Boris definirá com sua santidade o arcebispo.
Amargurada e sem saÃda para aquela situação, Verônica seguiu a freira pelo corredor, até alcançarem a grande capela. Um coral de freiras entoava cânticos sacros, enquanto ela era colocada ao lado de outras duas jovens, que também iniciavam o noviciado naquela noite.
domingo, 17 de setembro de 2017
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