domingo, 17 de setembro de 2017

Capítulo 19 - Verônica trancou A Porta

Verônica trancou a porta e fechou a rota cortina que cobria a pequena janela. Antes, olhou para fora e viu que começava a nevar outra vez. Sentou-se na cama e chorou por longo tempo. 

Depois, movida por um sentimento de urgência que não compreendia, abriu o baú da mãe e de novo examinou um a um os objetos que ela guardava ali: um livro do padre Jan Huss8, amigo de Geórgia que ela não conhecia e que as ajudava através de outro amigo comum. Falou baixinho:

- Como minha mãe podia gostar de um padre como esse?


Abriu o livro e fixou as páginas manuscritas, porém não sabia ler o suficiente para poder compreender o sentido do que lia. A mãe lhe estava ensinando as letras, embora ela própria também tivesse muitas limitações. Somente os nobres ou os padres, que se internavam nos conventos, recebiam educação; os simples e humildes, o povo, não tinha acesso a ela.


Verônica tinha sorte de a mãe poder ler um pouco e lhe transmitir algo. Essa era outra das razões por que as demais mulheres da vila não aceitavam as duas. Definitivamente elas eram diferentes.

Verônica folheou um pouco mais o livro e depois remexeu nos demais pertences. Correndo os olhos pela casa, separou e enrolou numa trouxa de pano o pouco de pão e frutas secas que tinha. Então voltou a olhar pela janela. A neve tinha parado. 


Separou todas as roupas que possuía, e também as da mãe, e embrulhou tudo em outra trouxa de pano que fez com um lençol; tomando o pequeno baú nas mãos, recolocou dentro dele tudo o que a mãe guardava ali e o fechou. Acomodando as duas trouxas nas costas e o baú sob um dos braços, disse, indo para a porta:

- Preciso partir agora, imediatamente.


Apertando a jóia simples que trazia no peito, suspirou fundo e pediu:


- Que Nossa Senhora me proteja e me mostre o caminho.


Foi direto para o mercado central e por ali ficou, o mais discreta possível, observando o movimento.


Ouviu que uma carroça com alimentos ia partir logo para Praga. Aproximou-se do proprietário da carroça, que não conhecia, e disse:

- Senhor, ouvi que se dirige para Praga...


- Sim, vim trazer minha filha para ver a avó doente e vamos retornar agora com alguns alimentos.


Indecisa, ela arriscou:


- Preciso muito ir para a capital.


- E uma viagem e tanto, moça.


- Eu sei.


- Pode pagar?


Baixando os olhos, ela balbuciou:


- Não, senhor, não tenho dinheiro.


Calou-se por um instante, depois tentou de novo:


- Tenho um primo em Praga que vai me ajudar.


- Sem dinheiro, sem viagem.


- Por favor, senhor, preciso muito ir. Posso ajudar nos serviços de sua casa, como pagamento...


O homem pensou por alguns segundos; lembrando-se da sujeira em seu pequeno armazém, assentiu:


- Pois bem, tenho uma pequena mercearia que precisa de uma boa limpeza. Se fizer o trabalho, e bem, posso levá-la.


- Está combinado. Limpo tudo e pago a viagem com esse trabalho.


- Então suba. Vamos partir assim que minha filha chegar, antes que recomece a nevar. Não demorou muito e Verônica viu surgir ao longe o rosto meigo de uma jovem que andava depressa, procurando a carroça do pai. Ao avistar Verônica, sorriu, simpática. O pai logo esclareceu a presença da estranha, e a garota disse apenas:


- Que bom! Teremos companhia para a volta.


A carroça partiu, sumindo pela estrada. A viagem durou quase três dias inteiros. Nevou e parou de nevar algumas vezes durante o trajeto. Verônica co-chilava e acordava, apreensiva com aquela experiência e na expectativa do que a aguardava em seu destino.


Tão logo amanheceu, o padre Edmundo, em companhia de mais dois homens do vilarejo, bateu à porta da casa da jovem, chamando várias vezes por ela:


-Verônica, abra. Vamos minha filha, precisamos conversar. Abra.


Um dos homens opinou:


- Não adianta, ela não vai abrir. Vamos entrar e levá-la à força! O outro concordou:


- Vamos, padre, não podemos permitir que ela continue fazendo sabe lá Deus o quê! Arrombe a porta.


O outro homem forçou a porta, que não resistiu. 


Entraram. Vasculharam o pequeno cômodo e, nada encontrando, foram direto ao mercado central. O padre comentou:

- Deveria tê-la levado à força quando tive chance
- Devia mesmo, padre, não podia ter deixado que ela escapasse! Agora, espalhará o mal por toda a parte.


- Calma, vamos descobrir para onde foi.


Chegando ao mercado, logo descobriram que uma jovem viajara com um comerciante de Praga, que para lá retornava. Um dos homens ameaçou:


- Vou atrás dela e a trago de volta.


O padre o deteve pelo braço, sugerindo:


- Vou enviar um mensageiro ao arcebispo de Praga e alertá-lo sobre a garota. Achei que não seria necessário preocupá-lo, mas o farei imediatamente. 


Não precisam se preocupar. O nosso líder a achará sem demora e tomaremos as medidas cabíveis. 

Enviarei o mensageiro agora mesmo. Antes que ela chegue, o arcebispo terá as informações.

O outro falou enérgico:


- Que seja queimada na fogueira dos hereges! E virando-se para o padre, indagou:


- E o casebre, o que fará? Vai queimá-lo também? 


O padre respondeu:

- Já está confiscado, agora nos pertence. 


- Melhor assim. Aliás, nem sabemos como foi que ela obteve o imóvel. Aquela mulher era ardilosa. 

Quase nos envolveu a todos.

O outro homem, invocando na memória a figura de Geórgia, comentou reticente:


- Sim, era uma mulher perigosa...


De volta à igreja, o padre Edmundo escreveu ao arcebispo de Praga, informando-o sobre a jovem e pedindo que tomasse providências.


Enquanto isso, Verônica entrava na capital do antigo reino da Boêmia. O homem mostrou-lhe o estabelecimento que deveria limpar e ela quis iniciar o trabalho de imediato. Catarina, a filha de Vicente, argumentou:


- Fique conosco esta noite. Você deve estar exausta, depois de tudo pelo que passou e ainda mais essa viagem. Fique conosco hoje e faça amanhã o trabalho combinado.


- Agradeço, mas não posso pagar.


- Pois não terá de pagar... Não é, papai?


Meio a contragosto, o pai ia responder, quando Verônica, tomada novamente por estranho sentimento de urgência, afirmou:


- Não posso mesmo ficar. Agradeço a sua hospitalidade, Catarina, mas quero pagar o combinado e seguir meu caminho.


- E para onde vai? Conhece mesmo alguém na cidade?


- Sim, meu primo Boris mora aqui.


- Boris? E o que ele faz?


No intuito de desviar a conversa para outro rumo, a jovem perguntou, ao avistar uma pequena mercearia:


- É ali, senhor?


- Sim, essa é minha loja.


- Vou começar já.


- Está certo. Se estiver tão animada assim...


Ao abrir a porta da pequena loja, Verônica soltou um grito abafado. O estabelecimento estava imundo e até viu ratos se esconderem entre sacos de alimentos, montes de tecidos e outros objetos. 


Respirou fundo e pôs-se a limpar o salão. Era quase de manhã quando terminou. Ao ver tudo limpo, sentou-se em um canto da sala e, não podendo controlar o sono, adormeceu.

Ainda dormia quando escutou fortes pancadas na porta. De um salto, correu para trás de uns tonéis de carvalho que guardavam vinho; ficou agachada enquanto escutava a movimentação do lado de fora. 


Olhou pela janela e viu dois padres indo para a entrada da casa, que ficava nos fundos da mercearia. Pegou as suas coisas que estavam junto da porta e, ao se certificar de que não era vista, saiu correndo e embrenhou-se na mata que ficava perto da estrada. A intervalos de alguns minutos, virava-se para ter certeza de que não era seguida. 

Conhecia a cidade e foi em direção ao convento franciscano. Apesar de ficar bem distante, ela correu para lá sem parar.

Os dois padres vasculharam a mercearia e não acharam nenhum vestígio da jovem. Vicente indagou:


- O que foi que ela fez?


- É uma herege. Proteja sua família dessa moça.


Catarina assistia, incrédula, a toda a cena. Assim que os dois padres saíram, ela falou ao pai:


- Pai, sabe que Verônica não é isso de que a acusam.


- Não sei de nada. Nós sequer a conhecemos!


- Mas deu para notar que é boa pessoa.


- Você não sabe o que está dizendo. Não quero que converse mais com ela, ouviu bem? Se a acusam, podem acusar-nos também.


E erguendo a voz, ordenou:


- Não quero que a ajude, está claro?


Sem responder, a garota balançou a cabeça em sinal afirmativo, e entrou em casa chorando.


Verônica alcançou os portões do mosteiro, que em seu anexo abrigava o convento. Bateu na pesada porta, chamando:


- Por favor, preciso de ajuda! Ajudem-me, por favor! Depois de alguns minutos, um padre apareceu e indagou:


- O que deseja, filha?


- Meu primo Boris é padre nesta irmandade. Ele me conhece bem.


- Deixamos nossos parentes para trás quando nos unimos a Jesus, menina. O que deseja?


- Minha mãe morreu, padre, e me pediu que viesse até aqui. Ela disse que seria auxiliada, se viesse para cá.


- Se não a conheço, como posso acolhê-la? Como saber se me diz a verdade?


- Por favor, padre, pergunte ao meu primo. Ele poderá dar todas as informações a meu respeito.


- Não posso permitir que entre uma estranha sem nenhuma recomendação...


O padre começou a fechar a porta, quando uma das trouxas escorregou e caiu dos ombros de Verônica; quando a moça se abaixou para pegá-la, o esca-pulário de Nossa Senhora lhe caiu para fora do vestido. Ao vê-lo, o padre parou e perguntou: 


- De onde veio isso? - Era de minha mãe. Ela me deu, pouco antes de morrer. O padre olhou em volta e então disse:

- Entre, vamos. Depressa.


Ambos entraram e o padre conduziu a jovem pelo interior do mosteiro.


8 Jan Huss foi pensador e reformador religioso, precursor do movimento protestante.

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