domingo, 17 de setembro de 2017

Capítulo 18 - Na Manhã Seguinte

Na manhã seguinte, assim que os primeiros raios do sol entraram no di-minuto aposento, Verônica se embrulhou nas cobertas de sua cama e saiu à procura dos vizinhos mais próximos. 

Queria ajuda para as providências necessárias às últimas homenagens a serem prestadas àquela que partia para a grande viagem. Todos, sem exceção, bateram-lhe a porta ao rosto com desculpas as mais descaradas.

A jovem resolveu, então, procurar o padre do vilarejo em que viviam, ao norte do antigo reino da Boêmia. Ela e a mãe nutriam temores e prevenções com relação à Igreja Católica, entre outras questões pelos seus métodos de coação e controle do povo.


Desde o ano de 476, quando o império romano do Ocidente caíra após ser invadido por diversos povos bárbaros, a única instituição que não se desintegrara junto com o esfacelamento do império fora a Igreja Católica; pelo contrário, fortalecida, passara a exercer forte influência política e econômica sobre todos os povos da Europa. 

Já nesse período iniciou-se intensa perseguição àqueles que se opusessem aos seus dogmas e interesses. Iniciou-se uma sucessão de abusos de toda sorte, com a execução de qualquer um que atrapalhasse os seus propósitos. E cresciam a força e o poder que detinha.

Verônica foi até o fundo da igreja e bateu à porta do alojamento do pároco. Ouviu de dentro:


- Quem me procura?


- Verônica, padre.


- O que deseja?


Lembrando-se do rosto inerte da mãe, os olhos dela encheram-se de lágrimas e, com a voz embargada, continuou:


- Preciso do senhor... O padre Edmundo apareceu à porta e, demonstrando contrariedade, falou áspero:


- O que deseja?


- Minha mãe está morta, padre. Preciso de sua ajuda para os serviços finais aos seus despojes.


O eclesiástico a mediu de alto a baixo. Por mais que desejasse mandá-la embora, sua posição o obrigava a tomar alguma providência. Ainda buscando alternativa, perguntou:


- Não tem nenhum sacerdote em sua família que possa prestar-lhe os últimos atendimentos? Estou muito ocupado hoje.


Respirando fundo, a jovem implorou:


- Por favor, padre, os poucos familiares que me restam vivem em terras distantes. Não posso levar o corpo de minha mãe para uma viagem tão longa... 


Não seria correto...

Ela silenciou por alguns instantes, depois prosseguiu:


- Além do mais, ainda há focos da peste em alguns lugares. Não posso arriscar atravessar as plantações com um corpo...


Depois de longo silêncio que se estabeleceu entre os dois, padre Edmundo disse:


- Muito bem, minhas obrigações sacerdotais me impõem a realização dos serviços. Leve-a até o rio depois do almoço e faremos o que é necessário.


Com lágrimas nos olhos, Verônica - em busca de algum conforto para sua dor - ajoelhou-se diante do padre, osculandolhe as mãos macias. Ele as puxou logo e reforçou:


- Logo no início da tarde. Não se atrase, estarei à espera.


- Sim, padre, obrigada.


Sem dizer mais nada ele entrou e fechou a pesada porta. Só depois de longo tempo frente à porta cerrada e fitando o vazio foi que Verônica enxugou as lágrimas e buscou a saída, atravessando a igreja. 


No corredor viu algumas mulheres, suas vizinhas, e uma delas lhe perguntou:

- Conseguiu o que queria?


- O padre Edmundo vai me ajudar.


- Somente um santo como ele para ter compaixão de vocês. Olhando para a mulher que lhe falava em tom agressivo, ela indagou:


- O que lhe fizemos para terem por mim e por minha mãe tamanho desprezo?


A outra ignorou a pergunta e continuou:


- Do que foi que ela morreu?


- Não sei.


- Claro que sabe. Foi da peste, não foi? - Não, é claro que não!


- Tenho certeza que foi. É castigo de Deus àqueles que lhe desobedecem...


Verônica assegurou:


- Sempre procuramos obedecer aos ensinos de Jesus.


- Sua mãe era uma bruxa e certamente foi castigada, e você também o será. Se a peste não a atacar, a Inquisição haverá de pegá-la. Não conseguirá livrar-se, como o fez sua mãe. Aliás, livrou-se tão-só porque o outro padre, antes de dom Edmundo, era um fraco e a protegeu.


Para não agredir a mulher, Verônica saiu correndo da igreja em prantos. Correu a trancar-se no seu casebre, onde se agarrou ao corpo inerte da mãe, protestando em voz alta:


- Você não podia me deixar aqui, mãe. Este é um mundo muito cruel...


Grossas lágrimas corriam pela sua face, quando o quarto foi subitamente envolvido em intensa e safírica luz. Verônica pôde registrar, assustada, a imagem de um jovem que se aproximou e disse:


- Tenha coragem e fé, minha irmã. Você não está sozinha. Sua mãe repousa e se recupera da longa jornada terrena, e você deve continuar firme sua tarefa. Estarão juntas novamente no futuro, mas agora precisa confiar em Deus e seguir na vida com coragem, como sua mãe lhe ensinou.


Verônica limpou as lágrimas e indagou:


- Quem é você? Um anjo ou um demônio? Por que vejo você e as outras pessoas não? Por que isso acontece comigo e acontecia com minha mãe? Por que nos castigam com essas visões, fazendo-nos alvo da implacável perseguição religiosa que avança sobre todos os que são diferentes?


Sorrindo com doçura, o rapaz comentou:


- Quantas perguntas, Verônica!


Pousando as mãos sobre a cabeça da jovem, o rapaz fixou os olhos no céu e orou em silêncio. Uma chuva de pequenas luzes caía profusamente sobre Verônica, que se sentiu envolvida em suave e re-confortante sentimento de paz. Cessou o medo e a mente da jovem aquietou-se. O enviado do mundo espiritual falou:


- Estou aqui para fortalecer-lhe o ânimo. Não sinta pena de si mesma. A capacidade que traz consigo de ver e ouvir o mundo espiritual é dádiva de Deus àqueles que necessitam aprender novas lições e aqui estão para o trabalho do bem.


- Do que está falando? Que trabalho posso fazer? 


Muitos dos que tiveram essa capacidade já morreram nas fogueiras. Não quero ser a próxima.

Tenho medo, muito medo. Não quero passar pelo que já vi e ouvi outros passarem. Por favor, você pode fazer isso acabar? Tocando-lhe os cabelos com amor fraterno, ele disse:

- Não compreende, ainda, o que me pede. Deve utilizar sua sensibilidade para ajudar as pessoas. 


Esta é sua tarefa aqui na Terra: ajudar seus semelhantes, a despeito de todas as dificuldades. 

Foi isso que sua mãe lhe ensinou, não foi?

Verônica baixou a cabeça e balbuciou sem coragem:


- Sim, foi isso, mas não quero correr o risco de morrer queimada. Sério, Alexandre a fitou nos olhos e disse, enquanto sua imagem
se desvanecia diante dos olhos da moça:


- Essa foi sua escolha, Verônica. Faça bom uso dela e sirva a Jesus.


- Espere, por favor, espere. Como faço para chamar você? O que devo fazer agora? Para onde vou?


O rapaz desapareceu. Verônica fitou o rosto sereno da mãe, que parecia dormir em profunda paz, e questionou:


- O que faço, minha mãe? Que triste futuro me aguarda?


Ficou em silêncio por muito tempo. Depois, sem motivo aparente, tocou no escapulário que a mãe lhe dera e relembrou o seu pedido para que se refugias-se no mosteiro, em Praga. Verônica relutava. Não queria nada com conventos, padres e freiras. Sentia repugnância pela Igreja desde pequena; a muito custo sua mãe e levava à missa aos domingos. Para a menina, aquilo sempre repre-sentara um martírio. Não obstante, tinha genuíno carinho por tudo o que se relacionasse a Jesus; sentia atração pelo Mestre nazareno e dele sabia muitas informações, bem antes de completar sete anos.


Geórgia se surpreendia e ao mesmo tempo se alegrava com a natureza da filha. Temia por ambas, naqueles tempos extremamente difíceis para as mulheres, especialmente aquelas que dependiam de si mesmas para viver. Por diversas vezes foram humilhadas pelos vizinhos; entretanto, a dignidade da mãe inspirava Verônica, que cresceu admirando a ela e aos valores que dela adquirira.


Depois de longo tempo, apertou fortemente a pequena moeda do escapulário e pediu a Jesus que lhe desse forças. Levantou-se, então, e preparou a mãe para ser levada à beira do rio Elba. Mais tarde, contemplava em silêncio as labaredas a consumir os despojes de Geórgia, que seguiam carregados pelas águas do caudaloso rio, enquanto as lágrimas corriam pela sua face lívida. A emoção dominava-lhe o espírito, e quase desfalecia. O padre prosseguia repetindo frases em latim, que ela não entendia, e fazendo várias vezes o sinal da cruz. 


Depois da curta cerimônia, ele virou-se para a jovem e afirmou:

- Pronto, está feito. Que Deus a perdoe. Erguendo os olhos ela o fitou sem coragem de dizer nada. 


Apenas agradeceu mecanicamente:

- Obrigada, padre.


Este a observou detidamente e perguntou:


- O que vai fazer agora?


Verônica respondeu, com voz embargada pela dor que sentia naquele momento:


- Ainda não sei.


- Pois é bom que pense depressa no que vai fazer daqui por diante; seria bom se me deixasse ajudá-la.


Vou recomendá-la ao convento de nossa ordem, para que a recolham e a preparem para servir a Nosso Senhor Jesus Cristo e à Santa Madre Igreja.

Verônica sentiu forte opressão no peito. Lembrou de novo da recomendação da mãe sobre os perigos que poderiam estar a espreitá-la e, prudentemente, respondeu:


- É uma boa idéia, padre. Preciso de poucos dias para me preparar; logo virei procurá-lo.


- Vou esperar que retorne o mais breve possível.

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