domingo, 17 de setembro de 2017

Capítulo 17 - República Da Boêmia

República da Boêmia7,  1404.  Enquanto a mãe permanecia deitada, repetindo orações decoradas, a jovem (ainda não completara dezoito anos) sentada à sua cabeceira segurava-lhe as mãos com firmeza. Ao notar as mãos frias da filha, Geórgia balbuciou em voz fraca, quase inaudível:

- Vá comer alguma coisa... Você está gelada... A jovem fitou-a com ternura e redarguiu:


- Não, mãe, eu estou bem. Com esforço Geórgia insistiu:


- Vá, minha filha, vá comer alguma coisa... Suas mãos estão geladas.


- É que está muito frio. Está nevando... Num esboço de sorriso, a mãe balbuciou:


- É quase Natal...


Esforçando-se por sorrir, a jovem concordou:
- Sim, é quase Natal.


- Precisamos rezar nossas novenas em homenagem ao menino Jesus.


- Nós já vamos...


Geórgia começou a tossir sem parar, para angústia de Verônica, que a olhava sem saber o que fazer. 


Aproximou-se e a ajudou a se sentar. Depois de alguns minutos, acalmou-se a tosse e Verônica observou a mãe, entristecida. Sabia que o estado de saúde de Geórgia era muito grave; há algumas semanas vinha se preparando para o pior. 

Por isso mesmo procurava aproveitar cada segundo em companhia da mãe; afastava-se apenas pelo tempo absolutamente necessário. Quando se assegurou de que ela estava bem acomodada, foi buscar uma sopa que fumegava no caldeirão, mantido aceso com pouca lenha. A beira da cama, pediu:

- Vamos, mãe, tome um pouco de sopa.


- Só se você me acompanhar, filha. Sorrindo, Verônica concordou:


- Está bem... A senhora não tem jeito, não é? A mãe esboçou um sorriso suave e comentou:


- A quem será que você puxou?


- Decerto foi a você, minha mãe.
- Acha mesmo?


- E como não? Com quem mais me pareço, se não com você? Além do mais, estamos juntas, só nós duas, há tanto tempo que é natural que nos asse-melhemos...


Calou-se de súbito. Recordava os últimos incidentes em que a mãe estivera envolvida com manifestações sobrenaturais. Geórgia, adivinhando-lhe os pen-samentos, disse:


- Minha criança, não se preocupe. Venha, sente-se perto de mim.


- Vamos tomar a sopa.


- Depois. Agora, precisamos conversar.
- Mas, mãe...


- Venha, filha, precisamos falar. Não desperdicemos o tempo precioso que nos resta com algo que pouco ou nada nos auxiliará.


- Você deve se alimentar.


- Já vou comer. Venha, sente-se bem perto de mim. Verônica aproximou-se da mãe, que a abraçou enternecida, aconchegando-a ao peito. Ficaram assim por longo tempo, a permutar profundo carinho. Depois, a mãe olhou a filha nos olhos, pedindo:


- Seja forte, minha filha, e não confie a ninguém os fatos que nos acometem de quando em quando. 


Ninguém nos compreenderia.

- Mãe, tento entender o que se passa com você, o que acontece quando fica daquela maneira... E não consigo.


- Também não posso explicar ao certo, mas sei que é algo bom.


- Você diz coisas estranhas, age de maneira esquisita... Dá receitas, fala coisas como se não fosse você.


- Minha filha, se não fosse uma heresia, diria que os céus se manifestam através de mim. E assim que eu penso.


- Mãe, não diga isso nunca mais! Se alguém a escutar...


- Não temo por mim, que tenho os dias na Terra contados, e sim por você. Não quero que carregue o peso da ser filha de uma bruxa. Por isso me calei, você sabe, e não por aceitar o que me dizem. Sei o que sou e o que sinto. Não sou uma bruxa.


- E claro que não! Você é a pessoa mais querida...


Verônica não pôde continuar, afogada pela emoção e pelo sentido pranto que lhe brotou da alma. 


Amava profundamente a mãe e sabia que logo não a teria mais perto de si.

Geórgia abraçou-a apertado e disse:


- Rogarei a Nossa Senhora que me permita vê-la sempre. Se depender de mim, jamais ficarei longe de você. Verônica abraçou a mãe ainda mais forte e ambas choraram enlaçadas. Depois, Geórgia pediu:


- Vamos, filha, confiemos em Deus, que sabe todas as coisas. Tudo será para o melhor.


A jovem apenas aquiesceu com a cabeça, mantendo silêncio. Após alguns dias o estado de Geórgia agravou-se. Ela quase não conseguia falar, tendo su-cessivas crises de tosse. Verônica atendia ao seu mínimo sinal de necessidade.


Naquela noite, porém, a jovem adormeceu pesadamente aos pés da cama da mãe. Estava exausta pelas consecutivas noites em claro e pelo desgaste emocional de ver-lhe a vida esvair-se pouco a pouco, sem que pudesse ajudá-la. 


Buscava sustentar a fé em Deus, aprendida com a voluntariosa Geórgia, que a criara sozinha, afirmando ter o pai morrido quando a menina era muito pequena. A luta para cuidar dela foi grande e consumiu os poucos recursos que ele lhes deixara. 

Verônica despertou assustada. A mãe a chamava:

- Verônica, chegue mais perto.


Quase de um salto acercou-se da mãe. Geórgia, com grande esforço, tirou do pescoço um antigo escapulário e depositou-o nas mãos da filha, pedindo:


- Leve-o sempre consigo. Coloque, vamos. Verônica objetou:


- Não, mãe, é a sua proteção...


- Coloque, vamos.


Sem energia para seguir argumentando, a jovem obedeceu. Colocou a pequena peça no pescoço e amarrou atrás da cabeça a cordinha que sustentava a medalha com a imagem de Nossa Senhora desenhada.


- Pronto, mãe.


- Ótimo.,. Quero que você... busque ajuda da irmandade...


- Não, mãe.


-Prometa. Tem de prometer... que não vai ficar sozinha... à mercê dos horrores da inquisição. Se cismarem com você, filha, é morte certa... E morte na fogueira.


- Ainda assim, não posso trancar-me em um convento. Não é o que quero para minha vida.


- Mas terá de procurar ajuda... 


Seu primo de segundo grau é padre, você sabe.

- Boris...


- Isso mesmo... Procure a ajuda dele... Você não pode ficar sozinha.


- Mas, mãe...


Geórgia teve outra crise de tosse e, quando se acalmou, foi mais assertiva:


- Prometa-me!


- Mãe... 


- Por favor... - balbuciou quase sem forças. 

Comovida, a jovem anuiu:

- Está bem, eu prometo.


Geórgia suspirou profundamente e, devagar, soltou as mãos da filha. A jovem observou seu semblante sereno e murmurou, entre pesadas lágrimas que lhe desciam pela face:


- Descanse, minha mãe. Um dia nos encontraremos... 


Depois apertou com força o escapulário que trazia no peito e, ajoelhando-se diante da cama, chorou sentida e longamente.

7 Boêmia é uma região histórica da Europa Central, ocupando os terços ocidental e médio da atual República Checa.

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