sábado, 16 de setembro de 2017

Capítulo 34 - Naquele Dia

Naquele dia a sala fervia pelo burburinho dos presentes: cardeais, bis-pos, prelados, mestres e doutores, os mais influentes da Europa, discutiam em tom acirrado. Presidiam as sessões o papa João XXIII e o rei Sigismundo.

Ambos, perfeitamente sintonizados com Núbio e seus servidores, assimilavam-lhes as emanações mentais, tomando-as como seus próprios pensamentos.

A reunião já ia avançada quando um mensageiro entrou e, falando ao ouvido do papa, deu-lhe importante notícia. O papa passou a informação ao rei, que de imediato interrompeu a sessão, informando a todos:


- Acaba de chegar seu mais destacado representante: Jan Huss. E ordenou ao mensageiro:


- Que entre. Sob olhares de reprovação e grande tumulto, Jan apareceu à porta, seguido de Jerônimo. 


O rei o convidou:

- Venha, Jan Huss, há lugar bem aqui, à frente.


Jan caminhou entre os inquisidores até o lugar indicado e sentou-se. Enquanto passava, podia ouvir os sussurros:


- E muita coragem, aparecer aqui...


- Ele não sabe o que o aguarda...


- Ele é corajoso mesmo...


- Terá o que merece...


Acomodou-se na cadeira orou mentalmente, suplicando amparo e força. A reunião daquele dia transcorreu sem surpresas. Entretanto, na manhã seguinte, tão logo Jan Huss colocou os pés no recinto onde seria conduzido mais um dia de debates e discussões, o papa ordenou:


- Jan Huss, diante da mínima possibilidade de o senhor resolver se retirar de nosso concilio, será detido no Convento dos Dominicanos, até que o chamemos para defender suas idéias.


Sem dizer palavra Jan fitou o rei, que lhe evitava o olhar. Sob os protestos de Jerônimo, Jan foi levado para o convento e colocado em uma cela infecta. Logo que ele deixou o salão, instauraram contra ele um processo inquisidor para que esclarecesse perante aquele concilio suas idéias. De fato, tanto João XXIII como a grande maioria da audiência daquele grupo de clérigos odiavam Jan Huss pela oposição declarada que fazia à situação estabelecida pela Igreja. Jan representava-lhes ameaça à consciência, que não suportava a verdade.


Iniciou-se assim, naquele dia, um longo e cansativo julgamento, que durou mais de um ano. Jan Huss ficou sob a guarda do bispo de Constança e o trans-feriram, como medida de maior segurança, para o torreão do Castelo de Gottlienben, onde foi preso a correntes. E assim permaneceu, dia e noite. Mais tarde foi transferido novamente para o Convento dos Franciscanos.


O concilio condenou as teorias de Wyclif e, por fim, depois de longos e cansativos dias, apresentaram a Huss o seu tratado a Eclésia, acusando-o de pregar em seu conteúdo a heresia e a insurreição. Depois de todo aquele tempo, Jan já estava consciente do que o aguardava. Escreveu cartas aos amigos, agradecendo a amizade que lhe dedicavam e animando-os por se terem conservado fiéis à verdade.


Quando confrontado, para que se retratasse frente ao concilio, Jan Huss sustentou seus ideais:


- Não posso dobrar-me diante de meus irmãos, os quais julgo equivocados. O Cristo é o chefe da Igreja, e não Pedro, e a minha regra básica de fé é a Bíblia; não são os dogmas contaminados pelos interesses materiais que se imiscuíram em nosso meio, como ervas daninhas, destruindo os ideais puros de amor e humildade pregados e exemplificados por Jesus. Ele é meu Mestre e somente a ele me curvo...


Sob ordem de João XXIII, prenderam-no de imediato e o levaram novamente ao cativeiro. O papa ordenou recesso até a manhã seguinte, quando se encontrariam no refeitório do convento.


Sob a gritaria que se instalara no recinto, o papa encarou Sigismundo e concluiu:


- Quero encerrar esse julgamento amanhã.


Na manhã de 5 de julho, os membros do concilio se reuniram para julgar o acusado. A reunião estava agitada. O julgamento começou sem a presença do réu, que chegou apenas e tão-somente para ouvir a sentença, previamente definida pelos responsáveis pelo concilio. Foi João XXIII quem a leu:


- O réu é culpado de heresia. Sua sentença é a morte pela fogueira.


No dia seguinte Jan Huss foi conduzido a um terreno vazio. Enquanto caminhava para a execução, encontrou-se com Jerônimo, que lhe acompanhara os mínimos passos. O amigo gritou:


- Estamos com você, Jan Huss! Nenhum de seus ideais irá perecer!


Jan respondeu, firme:


- Estou pronto para morrer na verdade do Evangelho, que ensinei e escrevi. Morro a serviço de Jesus e de seus ensinamentos.


Ao alcançarem o local preparado para a execução, despiram-no, amarraram-no a um poste, ajuntaram lenha à sua volta e lhe puseram fogo. Tão logo o amarraram, Jan Huss, viu-se circundado pelas entidades espirituais que o amparavam. Seu olhar se deteve em Elvira, que emitia intensa luz. O grupo de espíritos envolvia o corpo físico de Jan Huss em intensa energia, anestesiando-lhe os centros nervosos e atenuando a dor do fogo em sua pele. 


Assim, convicto de que tomara a melhor decisão e de que se entregava por amor ao Evangelho, Jan não sentia medo. Ao contrário, a bela visão que tinha era o prenuncio das alegrias que o aguardavam ao transpor aquele momento, e ele elevou, em meio às chamas, melancólico canto ao Pai celestial.

Em intenso trabalho, a equipe de espíritos o desligou do corpo físico, que ardia em chamas. Seu corpo espiritual foi auxiliado e recebido por eles.


Elvira o amparava e logo partiram, rumo à colônia espiritual. Assim deixava a Terra Jan Huss, o precursor da reforma protestante.

Naquela mesma tarde, no mosteiro em Praga, Verônica agonizava em sua cela. Enfraquecida, definhara dia a dia. O ódio por Boris a consumia.


 Em vão a mãe tentava lhe falar em sonho; ela já não a via nem a escutava. Mesmo assim, Geórgia continuava empreendendo todos os esforços para auxiliar a filha. Comentava com os outros que ali estavam para ajudá-la:

- Não vamos desistir. Enquanto ela estiver viva, temos uma centelha de esperança.


Um dos companheiros comentou:


- O estado dela é muito grave. Não nos escuta e sua vibração é refratária ao nosso auxílio, impedindo-a de recebê-lo. Nossos recursos se esgotaram.


Com os olhos rasos de lágrimas, Geórgia argumentou:


- Eu sei. Mas acima de todas as circunstâncias está Deus, nosso Pai.


Ela fez breve pausa, depois prosseguiu:


- Foi um longo preparo para que esta encarnação pudesse acontecer. Tantos envolvidos, todos os esforços que empreendemos para que ela tivesse essa oportunidade... 


Tanto tempo estudando e se preparando e, agora, a encarnação termina, muito antes do tempo previsto, pela sua desistência da vida.

O grupo permaneceu em silêncio. Depois, notando que a situação da moça se agravava rapidamente, um deles disse:


- Ela deve ser desligada. Sua energia vital chegou ao fim. Verônica suspirou fundo e com um longo gemido foi desligada em definitivo do corpo físico.


Atordoada e confusa, observou seu corpo e gritou de pavor. Logo viu as entidades espirituais densas que lhe dominavam o pensamento e os sentimentos e, embora tentasse fugir, horrorizada, elas a seguiam, dizendo:

- Agora, você é definitivamente nossa. Não há como escapar. Acabou tudo. Você nos pertence.


Ela corria desesperada pelos corredores do mosteiro, deparando com criaturas horrendas a cada canto em que virava; apavorada, corria ainda mais.


 Em vão Geórgia buscava fazer-se visível à filha. 

Ela não conseguia registrar a presença amorosa da mãe. Geórgia orientou os amigos:

- Devem regressar agora; outros deveres os aguardam. Agradeço pelo muito que se dedicaram à minha querida Verônica. Vou acompanhá-la e cuidar dela. Em algum momento, Deus haverá de me permitir socorrê-la. Preciso ficar e ajudá-la.


Os amigos se despediram num abraço, retornando à colônia espiritual.


Passado muito tempo, Verônica, com os cabelos desalinhados, os olhos arregalados de pavor e a respiração ofegante, estava sentada junto ao protetor lateral da ponte de César. Olhava para o rio que corria abaixo, sem conseguir compreender o que acontecia. Ao redor, via pessoas que caminhavam e de repente sumiam, para novamente aparecer e continuar a andar. Ouvia gritos e urros de dor dilacerante, sem saber de onde vinham. Às vezes presenciava verdadeiras procissões de religiosos que, em bando, seguiam imagens ou cruzes. Todas as pessoas pareciam indiferentes, alheias ou assustadas. Ela estranhava o que via, porém estava perturbada demais para entender sua nova situação. Observava, então, o rio. A água, que fluía abundante, de súbito tornara-se gelo. As árvores, secas, perdiam todas as folhas, para logo após receberem novas ramagens. Da mesma maneira, o rio logo se transformava em forte correnteza. Completamente atordoada, Verônica chorava. Quando percebia a aproximação das entidades que a perseguiam, corria esbaforida sem destino, para se ver outra vez na ponte sobre o rio. 


Depois de infinitas repetições de tais cenas, ela pensou:

- Devo estar louca.


E subindo no peitoril do protetor da ponte, resolveu tirar a própria vida. Olhou em torno: o belo Castelo de Praga erguia-se majestoso e imponente; os telhados das casas eram tão belos que pareciam brinquedo de criança. Contemplou o céu e disse em voz alta:


- Não suporto mais. Só me resta morrer!


Atirou-se no rio, sendo envolvida pela água fria; não demorou muito, o rio congelou de novo e ela se sentiu aprisionada nas águas. Debateu-se até ficar totalmente exaurida. Sem forças para lutar, perdeu os sentidos. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, percebeu que alguém lhe afagava os cabelos. Abriu os olhos e viu um rosto delicado a observá-la. A mulher com voz suave buscava acalmá-la:


- Fique calma, minha filha, tudo ficará bem.


Sem reconhecer a mãe, ela indagou, encolhendo-se:


- Quem é você? O que quer comigo? O que aconteceu? Estava no rio e agora estou aqui?


Geórgia estendeu a mão, mas Verônica retraiu-se assustada, insistindo:


- O que houve? Como saí do rio? Por que não morri? Paciente, a mãe disse:


- As águas congelaram e você ficou presa nelas. 


Passei pela ponte e a vi. Você perdeu os sentidos, mas consegui tirá-la de lá.

- Onde estou? Que lugar é este? Como vim parar aqui?


- Aqui é um hospital. Eu a trouxe para receber ajuda. Todos são amigos, não tenha medo.


- Ninguém é meu amigo. Todos me odeiam, me detestam. Thomas se aproximou devagar, com o coração doído; a filha estava completamente transtornada e fora de si. 


Levando um com água onde haviam depositado medicamentos para que ela dormisse sono profundo e reparador, entregou o copo a Geórgia, que o ofereceu à jovem:

- Tome, você precisa de água fresca. Logo se sentirá melhor. Desconfiada, Verônica recusou: 


- Não quero. E se colocaram veneno na água? E se foi Boris quem mandou vocês aqui para me matar?

- Veja, vou tomar um pouco para você ter certeza de que é apenas água.


Ela tomou metade do líquido e o ofereceu novamente à filha:


- Agora é a sua vez, vamos. E apenas água...


Verônica, que estava sedenta, finalmente cedeu e tomou a água com sofreguidáo. Assim que terminou, forte torpor a envolveu e tentou gritar:


- O que fizeram comigo? Vocês me mataram... 


Geórgia afagou-lhe os cabelos e disse:

- Durma, filha, descanse. Estará melhor quando acordar. Agora entregue-se ao sono que a tranqüilizará.


Verônica, embora assustada, não pôde conter a sonolência que a dominou e dormiu profundamente.


18 Texto bíblico encontrado em II Reis, cap. 6, vs. 15, 16 e 17

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