sábado, 16 de setembro de 2017

Capítulo 32 - Aos Primeiros Sons

Aos primeiros sons do alvorecer, Jan despertou e deparou com esplendo-rosa figura luminosa em seu quarto. Atônito com a beleza e a leveza daquele ser espiritual que pairava no ar, como se flutuasse diante dele, fechou os olhos e abriu-os de novo, pensando estar ainda sob o efeito de um sonho. Com voz doce, Elvira comentou:

- Não, meu querido irmão Jan Huss, você não está sonhando. Com o coração repleto de grande emoção pela sublimidade do espírito que o visitava, ele balbuciou:


- É um anjo de Deus? Sorrindo, Elvira respondeu:


- Não sou um anjo, mas sou enviada de Deus para fortalecê-lo em sua tarefa.


Sentando-se na cama, Jan prosseguiu:


- O que devo fazer? Vem me orientar a não me afastar de Praga? Devo permanecer e continuar lutando?


- Sabemos de sua coragem e determinação na tarefa que abraçou; neste momento, porém, cremos ser mais prudente acatar o pedido de Venceslau. A situação é muito conturbada; densas energias pairam sobre o rei e sobre toda a Igreja.


- Desejo ardentemente ver a Igreja livre das teias em que se prendeu... 


Ela não serve a Jesus, mas aos interesses de seus líderes.

- Sim, Jan, decerto. Foi por isso mesmo que você desceu à Terra com a nobre missão de lutar contra a cegueira que se instalou dentro da própria Igreja. A ignorância e a dureza de coração têm mantido os homens cativos de mentes espirituais que desejam a todo custo retardar o progresso da humanidade.


Sorrindo, o servo de Deus respondeu:


- Quão poucos compreendem isso... 


É verdadeiramente uma enviada de Deus.

- Estaremos sempre ao seu lado, dando-lhe força e amparo, bem como de todos quantos buscam a Deus de todo o coração. Sua missão prossegue, JanHuss.


Mantenha a confiança. Não pense jamais que pela dificuldade que se apresenta mais intensa, pelos obstáculos que se erguem como gigantescas pa-redes à sua frente, algo há de equívoco em suas escolhas, ou mesmo que Deus está distante de você.

Não deixe nenhuma dúvida ou incerteza sequer espreitar seus pensamentos. Siga confiante, pois está a serviço dos espíritos elevados que conduzem o progresso da Terra, os quais, por sua vez, estão a serviço direto de Jesus, a quem tanto ama. 

Enquanto estiver no exílio, aproveite o tempo e escreva. Prossiga com seus trabalhos escritos, pois eles continuarão, mesmo depois que não estiver mais aqui, sendo úteis à humanidade.

Após breve pausa, Elvira indagou:


- Deseja fazer alguma pergunta ou dizer alguma coisa? Estou aqui para falar e também para escutar, fazendo o que me for possível para fortalecer sua alma nas tarefas que haverão de se seguir.


- Por vezes, sinto-me muito sozinho. Olho ao redor e me sinto incompreendido e só, como se falasse em um deserto, palavras espalhadas ao vento, sem utilidade real.


- E natural que se sinta dessa forma, dadas as condições de evolução e compreensão dos homens deste tempo. No entanto, não só. Isso de fato não acontece. Tem seguidores, Jan, a quem influencia muito. E também, é claro, exerce forte impacto sobre o povo da Boêmia, mais especialmente aqui na bela cidade de Praga.


- O povo é muito carente...


- Sim, e sua dedicação alimenta a alma de muitos.


Além disso, alguns compreendem profundamente os valores que defende. Veja Jerônimo, por exemplo.

Jan sorriu ao se lembrar do discípulo que lhe trouxera os textos de Wyclif pela primeira vez. 


Elvira prosseguiu:

- Ele o admira e o compreende muito bem. De fato, está pronto para auxiliá-lo no que for necessário.


- Ele é um bom homem, fiel e verdadeiro, um servo de Deus.


- Sim, Jerônimo é alguém por quem nutro imenso carinho. De fato, estarei aqui para apoiá-los aos dois nesta tarefa árdua de acender a luz nas trevas da ignorância dos homens.


- Gostaria de entender melhor por que se fez tamanha escuridão no seio da Igreja. Ela, que deveria manter a chama do amor e da verdade na Terra, a serviço de Jesus, mantém os homens na mais profunda escuridão...


Elvira o observou por um tempo, depois respondeu:


- Os homens preferem silenciar a consciência, abafando-a e obscurecendo a mente, a entregar-se ao trabalho de iluminação própria, seguindo de fato o modelo de Jesus. Entregam-se assim, aos milhares, à pesada hipnose que mantém suas mentes atadas a outras mentes presas ao mal, que campeiam por toda parte.


- Compreendo. Seguirei fazendo tudo o que estiver ao meu alcance para auxiliar os homens a despertar.


- Essa luz irradiará seu brilho pelo mundo.


Envolvendo Jan Huss em luzes suaves, Elvira se despediu e partiu, deixando-o tranqüilo e confiante. 


Jan dedicou o dia a preparar-se, e logo na manhã seguinte, em obediência ao rei Vesceslau, e sobretudo aos espíritos que o orientavam, deixou a cidade de Praga.

No mosteiro, alheia à situação ao seu redor, Verônica conservava na mente e no coração o desejo de vingar-se de Boris. Atribuía a ele todo o seu sofrimento, fechando-se mais e mais à voz da consciência e até às advertências que vinham de sua mãe, que vez por outra a visitava durante o sono físico. Fixando-se em sentimentos menos elevados e deixando-os dominar-lhe o ser, Verônica se entregou ao controle de entidades espirituais que, agora, praticamente lhe dirigiam os pensamentos, mantendo-a sob forte hipnose.


Em uma noite muito fria, viu pela janela quando Boris chegou. Rapidamente apossou-se de uma faca afiada na cozinha e foi para o quarto do primo, levando a chave do quarto dele, que obtivera com outra noviça. Escondeu-se no quarto esperando pela entrada do padre.


Ele abriu a porta, mas a manteve entreaberta, conversando com um clérigo que o acompanhava.


Enquanto falavam, movido por inesperada intuição, sentiu uma presença diferente no quarto e de quando em quando olhava para o interior do aposento, incomodado e desconfiado. Notou uma silhueta escondida atrás da cortina e, despedindo-se do outro, fechou a porta. Verônica não demorou a saltar sobre ele, pronta a cravar a faca em seu peito.

De sobreaviso, Boris foi capaz de defender-se e os ataques feriram-lhe o antebraço e também o rosto.

Depois de rápida luta, ele conseguiu deter o braço de Verônica e, agarrando-a, imobilizou-a e carregou-a corredor afora, em busca de ajuda, pois sentia que os ferimentos eram profundos. Entrou com ela no refeitório, para o desespero de freiras e padres. Logo, alguns deles seguraram Verônica firmemente. Ela, absolutamente descontrolada, gritava todo tipo de impropérios e acusava Boris de ter assassinado seu pai.

O primo foi socorrido e levado depressa ao seu quarto. Logo um médico entrava no mosteiro, chamado às pressas para socorrer o rapaz. Verônica, por sua vez, foi levada diretamente para uma cela de clausura e trancafiada. O arcebispo Zbynek Zajíc chegou e, depois de certificar-se da boa condição de Boris, foi vê-la e a advertiu: 


- Será julgada pelo santo oficio. Atentou contra a vida de um padre e isso só pode ser coisa do demônio. Você, aliás, sempre esteve sob o domínio do mal, não me admiro de ter agido dessa forma.

 Mas seus dias de loucura terão fim. Em breve, será condenada e pagará pelo mal que intentou contra o padre Boris. Seus dias estão chegando ao fim.

Ao invés de sentir-se intimidada, Verônica continuava a gritar, desvairada. Já não temia pela própria vida. Estava completamente desnorteada e enfraquecida. Hipnotizada por espíritos que a dominavam, não tinha mais condições de raciocinar com clareza.


Depois de algumas semanas, Boris, recuperado, participava de pequena reunião com o arcebispo, a portas fechadas, para decidir o futuro de Verônica. 


Zbynek argumentava:

- Não entendo por que não resolvemos logo a situação dessa moça, levando-a à fogueira. Queria que assim tivesse sido desde o princípio, quando ela chegou aqui. Você me impediu de fazer o que achava melhor, e agora veja: ela colocou sua vida em risco e pode fazê-lo novamente, se não tomar cuidado.


- Ela não vai conseguir fazer mais nada contra mim.


 E eu quero, como sempre quis, vê-la sofrendo um pouco mais antes de acabar com ela.

- Mas por quê?


- Ora, não sei! Ela me causa repugnância!


- Mas qual a causa desse sentimento? Ela se insinuou de alguma forma, ou tem outros motivos?


Levantando-se, Boris caminhava de um lado a outro na sala, aflito. Depois, com o olhar distante, refletiu em voz alta:


- Não sei exatamente a causa de minha aversão por Verônica, mas quero que ela sofra, que apodreça naquela cela fétida e nojenta, sem ver a luz do sol, sem falar com ninguém. Isso, para ela, será pior do que a morte. Depois, quando não tiver mais nada para sofrer, terei misericórdia e desferirei o golpe final na fogueira.


Fez-se pesado silêncio na sala, até que o arcebispo, erguendo-se, disse:


- Pois bem, que seja. Ela é sua prima, seu problema e sua responsabilidade. Faça como quiser, mas tome cuidado com essa moça. Ela é perigosa
Sem dizer nada, Boris despediu-se do arcebispo, beijando-lhe a mão. Depois dessa decisão acordada por ambos, Verônica permaneceu presa.


Passaram-se quase dois anos. Exilado em Husinic, Jan Huss dedicou-se aos textos, escrevendo uma de suas mais importantes obras: "A Eclésia".


Enquanto isso, a situação já conturbada em Praga agravou-se com a doença do rei. Venceslau foi finalmente vencido por ela e afastou-se para tentar tratamento. Imediatamente, Sigismundo assumiu o trono da Boêmia, apoiado por João XXIII e pelo alto nível hierárquico da Igreja. Diversos grupos que apoiavam as idéias de Jan Huss prosseguiam pregando contra as ações da Igreja; entre eles estava um fiel discípulo de Huss, conhecido como Jerônimo de Praga.


Logo depois de assenhorear-se das circunstâncias e incentivado por João XXIII, e muito especialmente por entidades espirituais que ardilosamente o dominavam, Sigismundo preparava uma sutil armadilha para Jan Huss.

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