quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Capítulo 59 - Eliana Atendia

Eliana atendia a uma mãe, no espaço iluminado da creche que se preparava para receber os bebês e as crianças. 

Explicava, amorosa:

- É preciso que você esteja trabalhando, minha filha. A creche destina-se, fundamentalmente, àquelas mães que precisam trabalhar e não têm com quem deixar os pequenos.


- É que eu preciso arrumar emprego, dona - insistia a mulher, visivelmente contrariada. - Ainda não tenho, mas vou procurar trabalho.


- Vamos fazer o seguinte: seu nome ficará em nossa lista de espera; assim que atendermos as mães já empregadas, se tivermos vaga, vamos procurar você.


Iracema ergueu-se indignada: - Vão se arrepender... 


Eu sou da comunidade, e quero deixar meu filho aqui. Vocês vão ver só! Não podem fazer isso comigo. O pai deles vai dar uma lição em vocês... 

Garantiram que eu encontraria vaga para meus três filhos, principalmente o bebê... E agora você vem dizendo que não posso? Você é que não deve ter ido com a minha cara e não quer receber meus filhos.

Sem pausa, e aos gritos, a mulher prosseguiu:


- Qual é o problema? Acham que as outras crianças são melhores do que as minhas? É isso? Fale logo!


Calma, porém firme, Eliana pediu:


- Por favor, acalme-se. Não é nada disso. Você não está compreendendo.


- Claro que estou.


Iracema, fortemente influenciada por espíritos das trevas que desejavam destruir Eliana, perguntou:
- Está me chamando de burra também?


No instante em que ia responder, Eliana sentiu a influência sob a qual se encontrava a jovem mãe e, seguindo orientação espiritual que lhe brotava no âmago, através da intuição, disse:


- Olhe, Iracema, acho melhor você retornar em outro dia, quando estiver mais calma. Nossas portas estão abertas para você e seus filhos. Traga-os quando quiser...


A jovem não a deixou concluir. Ergueu-se, furiosa, e gritou ainda mais alto:


- Meus filhos são bons demais para vocês, porcos imundos! Eles não vão colocar os pés no lixo que é esta instituição miserável.


Levantou-se, pôs a bolsa no ombros e, já perto da porta, virou-se para Eliana e ameaçou, entre dentes:
- Vocês me enganaram... Vocês me pagam... Aquele Mateus também vai se ver comigo.


Saiu gritando ofensas e palavrões pelo corredor, até alcançar o pequeno saguão da recepção. Helena entrava naquele instante e cruzou com a mulher que saía esbravejando. Observou-a e entrou, preocupada com Eliana. Esta permanecia sentada, tentando compreender o que se passara. Ao ouvir a menção do nome de Mateus, sentiu de imediato que havia algo mais naquela informação. Algo deplorável. Assim que a viu, Helena indagou:


- Você está bem?


- Acho que estou.


- O que foi que aconteceu? Na entrada vi uma moça que não parava de gritar... Quem era? O que ela queria?


- Era Iracema, moradora da comunidade. Teve essa reação quando informei que estamos dando preferência, neste momento, às mães que já trabalham. - Ela não tem serviço fora de casa?


- Não. Disse que vai arranjar, mas queria que os filhos ficassem aqui desde já.


- Que reação agressiva, meu Deus! Já presenciei atitudes hostis de outros moradores da comunidade, que saíram daqui ofendidos, mas tal extremo nunca tinha visto.


- Nem eu. Estou surpresa e intrigada.


- Intrigada?


- Sim. A moça mencionou o nome de Mateus e disse que alguém aqui lhe garantiu que poderia trazer os filhos; que a instituição os receberia, por terem o perfil adequado.


- Quer dizer que Mateus deu falsas esperanças à moça?


- Não sei se foi ele.


- Ora, se ela mencionou seu nome... Quem mais seria? As duas ficaram a refletir, até que Helena questionou:


- Mateus costuma visitar a comunidade, Eliana? Ele participa da sopa ou de alguma outra atividade assistencial?


- No início participava, depois parou. Tem comparecido apenas às tarefas doutrinárias; há muito deixou de lado as beneficentes.


- Será que ele conhece alguém da redondeza?


- Não faço a menor idéia, Helena.


- Essa história está soando muito estranha. Sinto um mal-estar, não sei por quê...


- Eu também. Basta mencionar o nome de nosso irmão para que um sinistro arrepio percorra meu corpo. Precisamos ter cautela, Helena. Essa jovem me pegou meio despreparada para esse tipo de problema.


- Você está certa. Redobremos a oração e a vigilância. Há algo esquisito no ar.


As duas se calaram e retomaram as respectivas tarefas. Helena foi até a recepção para chamar a próxima mãe a ser atendida e encontrou o espaço vazio. As duas mães que à sua chegada esperavam haviam ido embora. Ela retornou e ambas deram continuidade às providências para a inauguração da instituição, que aconteceria dali a duas semanas.


Na manhã seguinte, ao chegar à instituição, Eliana deparou com a porta da frente arrombada. Entrou, preocupada, e verificou que tudo se mantinha em ordem. Seu coração, entretanto, estava pesaroso.


Captava formas-pensamento e energias densas endereçadas a ela como raios a cortar o céu. Orava incessantemente, pedindo a proteção do Mestre.

Prosseguiu com o trabalho de atendimento às mães, notando que a procura caíra drasticamente. Ao partilhar sua inquietação com Helena, a companheira e amiga estimulou-a a fazer um boletim de ocorrência sobre o arrombamento. 


- Acha mesmo que é necessário?

- Para mim, é o melhor a fazer. Você não pode deixar passar assim... Afinal, não sabemos o que de fato está ocorrendo, não é?


- Não gostaria de fazer isso...


- Eu sei, mas é preciso, Eliana. Devemos ir agora, no horário do almoço.


As duas foram até a delegacia, onde o delegado as recebeu pessoalmente. Mirando Eliana de alto a baixo, indagou com frio desdém:


- O que querem?


Eliana comunicou a questão da porta arrombada, sem obter do delegado a mínima atenção. Ao contrário, antes que finalizasse, ele a interrompeu:


- Esse arrombamento deve ser tramóia sua mesmo!


Eliana ficou muda diante da acusação. Helena levantou-se e interveio, indignada:


- O quê?! Que absurdo é esse?


- Está querendo também o dinheiro do seguro, não é? Essa tal creche não tem seguro?


- Tem, e daí?


- Nem crianças existem lá, e já tem seguro.


- Senhor, está havendo algum engano. A nossa instituição atua no bairro há mais de quinze anos, prestando serviços à comunidade. Nunca houve qualquer problema, o senhor deve saber do histórico.


- Não conheço o bairro. Assumi a delegacia há pouco mais de um ano e tenho ouvido muitas histórias sobre vocês. Especialmente você, dona Eliana, sua macumbeira desvairada. Para que quer crianças agora? O que pretende fazer com elas?


Helena ia intervir novamente, quando Eliana a impediu. Sem perder a serenidade nem desviar os olhos dos do delegado, falou com firme autoridade moral:


- Desculpe-me, senhor, mas pode registrar a ocorrência? Incapaz de sustentar-lhe o olhar, o delegado respondeu:


- Vou chamar um escrevente. Ele fará o boletim.


Eliana continuou a fitá-lo, destemida. O celular do delegado tocou e, quando ele se afastou para atendê-lo, Helena comentou:


- Eliana, esse homem a ofendeu...


- Deixe, Helena, não nos detenhamos nas sombras.


Há muita sombra aqui. Se temos de fazer o documento, façamos. Eu não quero mais distrações.

Como o escrivão não apareceu, Eliana ergueu-se e foi até ele:


- Por favor, meu filho, estou muito cansada. Pode me atender? Com visível má vontade, o rapaz preencheu o documento. Quando estavam saindo, o delegado disse em tom de ameaça:


- Vou até a instituição. Quero fazer uma vistoria por lá. Helena olhou para Eliana e esta disse:
- Fique à vontade.


- Não preciso de sua autorização. Tenho um mandado - informou, tirando um papel do bolso.
Incrédula, Helena questionou:


- Por quê?


- Saberá quando acharmos o que estamos procurando.


Junto com um policial, ele efetuou minuciosa busca na instituição e nada foi encontrado. Preparavam-se para sair quando o delegado olhou para a área externa e perguntou:


- O que há lá em cima?


- Nada, essa escada leva ao teto, onde há um alçapão para o telhado. Temos intenção de continuar nossa construção no futuro, e deixamos a escada pronta. Lá em cima, por enquanto, há apenas a caixa d'água.


Fortemente intuído por entidades espirituais enfermiças, ligadas ao mal, ele resolveu:


- Vou subir.


Helena ia falar, porém Eliana e impediu:


- Deixe, Helena.


Não demorou para que o delegado gritasse lá do alto:


- Everaldo, ajude aqui.


As amigas se entreolharam, espantadas.


- O que pode ser? - disse Helena


- Não sei.


Eliana, tomada de repentina angústia, orava insistentemente pela proteção de Jesus. Logo o policial desceu, trazendo duas sacolas de feira cheias de produtos eletrônicos e outros objetos. Em seguida vinha o delegado, com outras duas sacolas.


Jogou tudo aos pés de Eliana e indagou:

- O que é isso?


- Eu não sei.


- Sabe, sim senhora. E uma carga de produtos eletrônicos que foi roubada anteontem aqui mesmo, no bairro.


- Senhor, eu nunca vi essas sacolas. Isso não pertence a mim nem a ninguém de nossa instituição.


- E o que veremos.


Virando-se para o policial, o delegado ordenou:
- Prenda. - As duas?


- Não, somente a dona.


- Se vai levá-la, terá de me levar também... 

- declarou Helena. Eliana cortou a discussão:

- Helena, preciso de sua ajuda; procure o Roberto ou o André. Ambos são advogados e poderão ajudar.


- Mas...


- Não faça nada, por favor. Deixe que me levem... 


Por favor, vá agora.

Helena respeitou a orientação e saiu. Em pé, na calçada, três entidades espirituais se divertiam ao ver Eliana, algemada, ser levada para a delegacia. 


Uma delas disse:

- Agora eu quero ver onde vai ficar a fé dessa mulher... Ela vai passar a noite no xilindró....


E gargalhavam prazerosamente. Eliana escutava a conversa dos três, graças à permissão de seu orientador espiritual. Este, sentado ao seu lado no carro, tranqüilizou-a:


- Não tenha medo. André vai ajudá-la e nada acontecerá. Mentalmente ela argumentou:


- E as sacolas? São prova irrefutável.


- Apresentaremos os verdadeiros culpados, mantenha-se firme.


Amparada pelas energias revigorantes de seu mentor espiritual, Eliana permaneceu serena e confiante.


Ao adentrar a delegacia, havia um tumulto instalado. Dois jovens gritavam, acusando-se mutuamente. O delegado foi saber do que se tratava e os levou para sua sala. Lá ficaram por longo tempo, enquanto Eliana, sentada, aguardava. 


Depois de quase duas horas, ele voltou sério e disse:

- Pode ir embora.


No momento em que ela se levantou, fitando-o para confirmar a liberação, André entrava na delegacia com Helena. Foi até Eliana e orientou:


- Não diga nada.


O delegado, adivinhando nele o advogado, disse:


- Ela pode ir. Não há mais qualquer acusação. 


Helena não se conteve:

- Como assim? E as sacolas?


O delegado apontou os dois jovens algemados e bêbados:


- São dois estúpidos. Foram eles que colocaram lá as sacolas a mando de Clayson, um traficante perigoso, que comanda o crime na comunidade.


- Mas por quê? Eliana logo disse:


- Iracema...


O delegado cocou a cabeça e disse: - Eles são ajudantes do Clayson e muito perigosos. Nunca os vi bêbados e tão sem lucidez como agora. Parece que foram hipnotizados...


- Posso ir, doutor? - Eliana perguntou.


Evitando seu olhar, o delegado deu a autorização. 


Ela deixou a delegacia em companhia dos amigos.

- Muito obrigada por vir me socorrer, André.


- O que é isso? Como poderia ter feito outra coisa? 


Que arapuca armaram para você, minha irmã?! 

Estou impressionado...

- É, André, por isso temos de orar e vigiar o tempo todo... Helena comentou, já dentro do carro:


- O que não compreendo é o porquê disso.


Eliana calou-se e meditou por todo o trajeto de volta. Naquela noite, assim que entrou na casa espírita, procurou por Mateus. Ele não aparecera.


Chegou finalmente o dia da inauguração da creche.


Com singela solenidade, o subprefeito da região deu por inaugurada a casa que receberia as crianças da comunidade. Os desafios eram grandes e Eliana se dedicava por inteiro, atendendo as crianças pessoalmente. Desejava conhecer cada uma delas.

Decorridos dois meses, Eliana conversava com Isabela sobre as atividades, quando uma senhora entrou com três crianças, uma delas um bebê de colo, pedindo ajuda.


- O que houve? -indagou a dirigente. Chorando, aflita, a mulher explicou:


- Houve um tiroteio lá em cima e balearam o pai deles. A mãe ficou totalmente descontrolada. 


Poderiam ajudar as crianças?

Tomando imediatamente nos braços a criança menor, Eliana respondeu:


- Claro.


E logo conduziu as outras duas, assustadas, a um grupo de crianças que brincava no pátio interno, retornando em seguida:


- Agora sente-se e me explique: quem são os pais das crianças? A mulher baixou a cabeça e suspirou, sem responder. Eliana insistiu:


- Preciso saber quem são as crianças. Fale, por favor. A outra hesitou um pouco, depois lamentou:


- Quando souber quem são os pais, a senhora não vai mais querer cuidar deles...


Eliana procurou acalmá-la, garantindo:


- Não se preocupe, isso não vai acontecer, até porque as crianças não têm culpa das imprudências dos pais. Pode dizer.


- A mãe deles é a Iracema e o pai... bem... é o Clayson, que controla o tráfico de drogas no bairro... Eliana encostou-se na cadeira e exclamou:


- Meu Deus!


- Viu só? Não disse que a senhora não ia mais querer saber deles?...


- Não é isso, minha filha, fique tranqüila. As crianças podem ficar, vamos cuidar delas, sim. 


Estou impressionada é com a forma como os acontecimentos vão se desdobrando...

Eliana emudeceu por alguns instantes, depois indagou:


- Onde está Iracema?


- Está na casa dela, totalmente bêbada. Assim que o marido foi baleado e levado pela polícia, ela começou a quebrar tudo o que tinha dentro de casa; jogou a televisão porta afora, se descontrolou, coitada... As crianças ficaram apavoradas; a gente escutava a gritaria e o choro delas. Depois, a mãe saiu como louca a gritar pelas ruas, querendo ir atrás da viatura que levou o Clayson. Eu e mais três vizinhas ficamos cuidando das crianças; quando ela voltou, estava completamente bêbada e... acho que drogada também. Nem notou que as crianças estavam lá, vendo a mãe daquele jeito. Então, achei melhor traze-las para cá.


- Quer dizer que Iracema nem sabe que estão aqui?
- Não. Ela está dormindo.


- Acho melhor avisarmos ao conselho tutelar o que está havendo.


- Não, não pode fazer isso. Ela vai ficar furiosa com a gente!


- Entenda a nossa situação. Se não avisarmos o conselho, ela poderá vir aqui e nos acusar de ter raptado as crianças. Sabe que já tivemos problemas por causa dela...


- E, eu sei.


- Pois então. Vou ligar para a vara da infância e informar o que está ocorrendo. Podemos ficar com as crianças aqui, desde que eles saibam.


Depois de algumas horas, uma assistente social entrava na instituição e Eliana a colocava a par de todo o caso. A moça foi até a casa de Iracema, que ainda dormia, totalmente dopada. Voltando à instituição, a assistente disse:


- Seria melhor levarmos as crianças para um abrigo, pois aqui não terão onde passar a noite.


Eliana refletiu um pouco e perguntou:


- E se eu as levasse para dormir em minha casa e as trouxesse para a instituição durante o dia?


- Não sei, acho o procedimento fora dos padrões...


- A mãe está perturbada, ignorando a situação do pai das crianças. Talvez com isso consiga se acalmar e se reequilibrar. Tendo as crianças por perto, seria mais fácil. - A senhora está disposta a levá-las para sua casa?


- Poderiam passar algumas noites lá. Tenho bastante espaço... A moça sentou-se ao lado de Eliana e disse:


- Aprecio sua dedicação, porém não me parece a melhor solução. Vou providenciar-lhes um abrigo para a noite. Durante o dia, se a senhora tiver como mandar buscá-las, poderão ficar na creche, mais perto da mãe.


- Está certo. Você é quem sabe.


- Creia-me, será melhor assim.


Eliana não insistiu. A assistente social levou as crianças, garantindo que as traria novamente no dia seguinte. Ao final do dia de trabalho, depois que todas as crianças deixaram a creche, ela foi, em companhia de Helena, até a casa de Iracema. 


Bateram na porta, sem obter resposta. Helena fitou a amiga e perguntou:

- Tem certeza de que quer fazer isso?


- Quero ajudá-la.


Eliana bateu e chamou, sem sucesso. Abriu a porta, que estava destrancada, e entrou; encontrou Iracema deitada na cama, ainda dormindo. Após to-marlhe a pulsação, foi até o fogão. Havia trazido legumes frescos e preparou um sopa suculenta e substanciosa para quando a jovem despertasse. Queria contar-lhe sobre a crianças pessoalmente. 


Quando a sopa estava quase pronta, Iracema apareceu na cozinha, cambaleante. Deparou com as duas estranhas em casa e, olhando-as com desprezo, indagou aos berros:

- O que estão fazendo aqui? Calma, Eliana procurou explicar:


- Sente-se. Preparamos uma sopa para você, venha. Precisa se alimentar.


- Quem pensa que é? Minha mãe? Não quero nada seu... Não quis fazer nada quando eu pedi... Aí ficou prejudicada, não foi?


Caiu em copioso pranto, para logo em seguida dar sonoras gargalhadas. Helena e Eliana se entreolharam e esta falou:


- Bem, já vamos indo. Se precisar de alguma coisa, Iracema, sabe onde me encontrar. Quero ajudá-la.


As duas saíram, e logo Iracema assomou à porta, gritando:


- Não preciso de vocês! Sei que não valem nada... 


São umas interesseiras. O Mateus me contou tudo. 

Vocês só querem usar as pessoas pobres daqui para tirar dinheiro do governo... Não quero nada com vocês...

Ao entrarem no carro, Helena falou, enquanto atava o cinto de segurança:


- Então Mateus andou espalhando calúnias a nosso respeito.


- Tem o telefone dele? - Eliana falou num suspiro.


- Tenho, está aqui na minha agenda.


- Depois de levá-la em casa, vou ver Mateus. - Quer que eu vá com você? Sorrindo, Eliana respondeu:


- Não precisa, Helena, já são quase dez horas. Você tem sua família.


- Prefiro ir com você.


Eliana calou-se, aceitando, com prudência, a oferta da amiga. Foram direto para a casa de Mateus. Ela estacionou o carro e ligou.


- Mateus, como está? - disse quando ele atendeu.


- Oi, Eliana.


- Pode falar, ou está ocupado?


- Estou meio ocupado... Aliás, de saída.


- Não vou demorar.


Diante do silêncio do outro lado da linha, ela prosseguiu:


- Podemos conversar um pouco agora?


- Fale.


- Não por telefone. Estou aqui em frente ao seu prédio. Posso subir?


Ele hesitou e Eliana afirmou, já atravessando a rua com Helena em direção à portaria:


- Estou subindo. É bem rápido.


Em alguns instantes, ela tocou a campainha e a porta foi aberta.


- Boa noite, Mateus.


- Boa noite, Eliana; boa noite, Helena. Entrem.


- E uma visita curta. Indicando-lhes o sofá, ele perguntou:


- O que aconteceu? Eliana, séria, disse:


- Estou preocupada com você. Há mais de dois meses não aparece no centro, ficamos todos preocupados.


- Tenho trabalhado muito. Estou prestes a ser promovido; além do mais, vou fazer uma viagem de negócios, visitando alguns clientes no sul do Brasil. Está difícil conciliar tudo.


- Entendo. E quando voltará?


- A viagem vai durar umas duas semanas.


Influenciada por seu protetor e por outros amigos espirituais que a apoiavam, ela esclareceu:


- Não, Mateus. Quero saber quando vai retornar dessa viagem que empreendeu para se afastar cada vez mais do Criador.


Helena, em oração, mantinha a cabeça baixa. De imediato Mateus ficou sem cor e sentiu as pernas tremerem. Estranho sentimento apossou-se dele, que resmungou:


- Do que está falando? Parece maluca.


Agora completamente envolvida pelo protetor, ela redarguiu: - Você sabe do que estou falando. Ainda há tempo de voltar atrás em suas ações, mas em breve ele se esgotará. Por que adiar mais?


Atemorizado, Mateus disfarçou:


- Já disse que não sei do que está falando. E agora preciso sair, tenho um compromisso importante... 


Um jantar de negócios.

Pousando no rapaz seus profundos olhos negros, Eliana ergueu-se e, com extremada ternura, tocou-lhe as mãos:


- Até quando vai fugir do bem?


- O que quer dizer com isso?


- Sei que nos tem caluniado.


- Isso é mentira.


- Não estou aqui para acusá-lo, Mateus, e sim para pedir que reflita sobre o que tem aprendido, pelos preciosos ensinos de Jesus. Eles são vida para nossa alma doente. Precisamos desse alimento espiritual para ser curados.


Mateus desconversou:


- Preciso ir.


As duas se levantaram e Eliana falou:


- Está bem, já vamos embora. Mas prometa que vai ao menos pensar no que lhe pedi.


Ele apenas balançou a cabeça afirmativamente, enquanto as acompanhava até a porta. Assim que elas saíram, sentou-se no sofá sentindo o coração acelerado. Estava confuso. Aquela mulher tinha o poder de mexer com suas emoções mais secretas e fazia despertar o melhor que havia dentro dele. 


Identificando o conflito interior de Mateus, as duas entidades espirituais que o assediavam sugeriram:

- Você não vai dar ouvidos a essa beata, não é? Não percebe que é uma louca? E doida varrida. Esqueça essa mulher de uma vez por todas.


E sentando-se na poltrona ao lado de Mateus, que registrava aquelas palavras como se fossem seus próprios pensamentos, comentou com o outro espírito, que se mantinha em pé:


- Ele foi incapaz de acabar com ela. Era para fazer algo que a comprometesse, que realmente a exterminasse... Não conseguiu, não teve coragem. 


Esse é um frouxo mesmo. E melhor que não volte àquele lugar. Nunca mais.

- E isso mesmo. Lá ele não pisa mais.


- Se voltar, é bem capaz de bandear-se para o outro lado, tal a fraqueza que demonstrou aqui.


- Será?


- Não duvido, não.


- Eles não são tão poderosos... Licínio é dos nossos há muitos milênios. - Só que aquela mulher também não desiste dele...


- É, isso é verdade.


- Apesar de concordar que eles não têm tanto poder assim, de qualquer modo acho bom que ele não vá mais lá, para garantir. Vamos providenciar a promoção e a transferência dele para outra cidade. 


Poderá ser útil em outro centro espírita; afinal, já desestruturou uns três ou quatro, não foi?

- Um deles fechou as portas de vez.


- Então, ele ainda pode ser de grande utilidade para nós. Aqui não conseguiu porque ela é a dirigente.


 Certamente em outra parte fará bons estragos.

- Então vamos. Temos muito trabalho a fazer.


Deixando Mateus pensativo e exausto, saíram as duas entidades a tramar como fariam para que ele, de novo a serviço dos seus propósitos, fosse bem-sucedido.

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